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Review: Um breve olhar sobre Cores & Valores

By 5 de novembro de 2015 No Comments

This is a journey into sound, a journey which along the way will bring to you new colour, new dimensions, new values.

Paid in Full – Rakim

 

O Racionais têm um poder único: criar álbuns que atravessam de forma incólume as décadas. Holocausto Urbano, por exemplo, continua atual como sempre e mais atual do que nunca. Sobrevivendo no Inferno é um dos maiores clássicos da música brasileira. Mas, sem sombra de dúvidas, e haverá quem discorde, Cores & Valores é, para não dizer o melhor, um dos melhores álbuns do grupo até aqui: pela técnica, pela reinvenção e pela síntese da força imagética expressa pelas palavras (ainda que isso soe incoerente).

A experiência simbólica com imagens é algo fantástico, ocorre diretamente no inconsciente e disso nunca podemos fugir. Vamos apertar o freio aqui e caminhar para uma rápida explicação. Usaremos dois frames que estão em sequência em uma cena de No Country for Old Men, filme dos irmãos Coen. Temos o seguinte: Javier Bardem interpreta Anton Chigurh, um assassino de aluguel frio e calculista que usa, em geral, um cilindro de ar comprimido para executar suas vítimas. Ao chegar num posto de gasolina, Chigurh se ofende com um comentário feito pelo dono da loja de conveniência e aposta a vida do homem num jogo de cara-ou-coroa. Nesse conflito aparecem as imagens:

 À esquerda, temos Chigurh que, nesse momento, encara o dono da loja. Além da expressão facial do ator, vários outros elementos são necessários para interpretarmos a cena. Não por acaso, a roupa de Chigurh é preta, como também é a toga usada por juízes em tribunais. Nesse caso específico, a cor transmite uma ideia de poder e de morbidez.  O enquadramento mais fechado serve para criar um clima de tensão que se acentuará durante a cena e, por fim, à direita da foto, temos chapéus de Cowboy que simbolizam poder e ameça/caça, em oposição ao que veremos no frame seguinte.

 À direita, o dono da loja. No frame imediatamente anterior da cena, via-se que o enquadramento deste personagem era bem mais aberto, via-se muito mais da loja, mas no momento que começa o conflito entre os personagens o enquadramento vai se fechando para o rosto do dono da loja, “sufocando-o”, “encurralando-o”, fazendo o espectador experimentar um momento de tensão. O recurso visual que se opõe ao chapéu de cowboy e conota a impotência do velho é o jogo de correias, em foma de forca, ao fundo. Chapéu de cowboy x correias, poder/caça x impotência/presa.

Nós, enquanto espectadores, experimentamos diversas sensações ao nos depararmos com imagens, mesmo que não saibamos disso de forma consciente. No cotidiano da vida real, essa ideia é bem mais palpável e sobre ela descansa o título do álbum, Cores & Valores, que abusa da polissemia da segunda palavra e das possibilidades de interpretação do título como um todo. O Racionais está mais venenoso do que nunca!

Já nos primeiros segundos da introdução, ouvimos, comandadas por Dj Cia, rajadas de metralhadora, uivos de lobo e uma voz sintetizada que repete, convicta e contundente:

Somos o que somos
Somos o que somos
Somos o que somos
Cores e valores

Do Queens à Vila Fundão, ouçam todos, Racionais está de volta, indobrável e pesado como sempre, com os mesmos valores de sempre,  é o que anuncia Cores & Valores, faixa que abre o disco. As primeiras indicações de que esse trabalho tem um forte caráter visual também são apresentadas aqui. Em seguida, Somos O Que Somos, na voz de Ice Blue, nos lembra como a rua é regida e quais as regras do jogo. Keep Gangsta!

Caminhamos para a terceira track, Preto e Amarelo, que  faz alusão direta ao nome do disco. É Negreta, Rosana Bronx, que manda uma ideia rápida. Há quem discorde?!

Dinheiro é bom no Capão, Nova Iorque, onde for

Na sequência, ouvimos Trilha, Eu te Disse, Preto Zica e Finado Neguin. As quatro músicas seguem uma gradação precisa que começa com uma tentativa de abordagem policial e chega ao seu objetivo com a narração do que podemos chamar de “Ciclo do Crime”. Fica claro que essa parte do disco carrega um certo traço informativo. Aqui, o eu-lírico, por vezes,  parece dirigir-se diretamente ao ouvinte, retomando avisos familiares a nós e nos contando algumas histórias. O caráter descritivo acentua-se a medida que a sequência chega ao grand finale, com toda belicosidade de Dj Cia e Mano Brown, Finado Neguin: a track mais criminosa do disco!

O tempo mal passou, a leitura foi rápida tanto quanto o disco, e já chegamos na oitava faixa. O refrão de Eu Compro, com a participação de Helião, diz, acompanhado pela voz da introdução:

– Eu compro!

Cordão

– Eu compro!

Que agride 

– Eu compro!

Os pano 

– Eu compro!

De grife 

– Eu compro!

Mansão

– Eu compro! 

De elite 

– Eu compro!

Pra noiz não tem limite!

Difícil dizer que é o único momento, mas esse é um dos quais a tal “força das imagens” ganha mais destaque, com Ice Blue e Helião no melhor estilo Ambition Az A Ridah! O cordão agride e insulta e fere e ofende e golpeia e escandaliza e fode! Mas a quem se dirige essa ação? E por que o eu-lírico tomaria esta atitude de maneira consciente? Pegue um país marcado pela cultura do apartheid e da limpeza étnica, some a isso acensão social experimentada nos últimos anos, multiplique tudo pela raiva de uma população que é cobaia do processo de favelização urbana e você tem uma resposta tão forte quanto este refrão. Se o cordão de ouro de 18 quilates da espessura de uma chave de roda incomoda os olhos da burguesia branca, o que poderia ser dito sobre as festas luxuosas e elegantes dessa burguesia enquanto boa parte da população brasileira mal tem o que comer? Por que uma minoria populacional teria o direito de agredir o eu-lírico sem que ele revidasse? E se ter carros e jóias é auto-afirmação, tenho certeza que deveríamos perguntar quem deu à elite esse nome: Elite. O segundo Verso, calando haters e juízes do rap, encerra a faixa com chave de ouro através das seguintes linhas:

Os nego quer algo mais do que um barraco pra dormir
Os nego quer não só viver de aparência
Quer ter roupa, quer ter joia e se incluir
Quer ter euro, quer ter dólar e usufruir

Estamos na segunda década do terceiro milênio, século XXI, novos espaços são conquistados por quem vive (ou vivia!) na periferia. O poder de compra da população menos abastada, agora, aumentou. Vemos negros nas faculdades como alunos, não só como funcionários; assim é nos aeroportos, como passageiros; assim é nos shoppings, como compradores. Essa presença também agride a minoria economicamente dominante, acensão social agride!

Nesse mesmo contexto de ascensão – e talvez da pressa dela-, A Escolha Que Eu Fiz é uma música nova com cara de antiga, correto?! Mais uma vez, vemos como as coisas se encaixam, tanto por essa faixa se contextualizar com a anterior como por retomar, inclusive, Eu Te Disse. Basta lembrarmos dos primeiros versos desta última:

Falei pra você, vai pra grupo não depois não vai dizer que Santo Antônio te enganou

Nessa altura do disco, a influência dos sons de Atlanta já está mais do que clara. Trap é a principal referência dos beats que ouvimos. E falando em beats, a próxima faixa me faz pensar: “O que o mestre Kl Jay deve a Tony Pizarro ou Easy Mo Bee?”. A resposta é fácil: “Nada!”. Kl Jay é um dos melhores do mundo no seu ofício e seus trabalhos falam por si sós. A atmosfera construída em A Praça dispensa comentários. Os versos de Edi Rock nos teletransportam à Virada Cultural de 2007 e o caráter visual do álbum fica ainda mais explícito. Chegamos ao momento mais obscuro do disco. As palavras escolhidas por Edi Rock foram pensadas não apenas para descrever o ocorrido e gerar arrepios, mas para tecer críticas a temas universais -inclusive à mídia- a partir de uma análise local. Várias características textuais das melhores letras de Edi Rock estão aqui, condensadas em 2:48 minutos:

Uma faísca, uma fagulha, uma alma insegura
Uma arma na cintura, o sangue na moldura
Uma farda, uma armadura, um disfarce, uma ditadura
Um gás lacrimogênio e algema não é a cura
Injúrias de uma censura, tentaram e desistiram
Pularam atrás da corda, filmaram e assistiram

Depois de nos guiar por um cenário tenso e violento, Edi Rock, com parceria de Don Pixote, nos leva, a bordo do Cores & Valores, para uma retrospectiva da carreira do grupo. O Mal e o Bem é o Racionais falando do Racionais, quase um metatexto. Não por acaso, essa faixa sucede A Praça, certo?! Soma-se ao tom nostálgico um sentimento de leveza trazido pela voz de Terra Preta no refrão.

Após retomar o passado, é a vez de Mano Brown nos ambientar em São Paulo. As rimas de Você Me Deve não são totalmente inéditas, foram retiradas da participação do compositor em Nova Função, de Johnny MC.  A 12ª faixa nos leva a SP, saúda toda a rápa, alegra o espírito e é o gancho perfeito para Quanto Vale o Show?. Sim! Primeiro nos realocamos num novo espaço, para que então possamos chegar espertos na crítica mais elaborada do trampo todo. Se o dueto Ice Blue e Helião levou a questão social para ser vista por um novo viés, Mano Brown não deixa por menos em Quanto Vale o Show?. De 83 a 87 vemos um filme através das rimas de Brown, que usa e abusa de referências à época. Os recursos visuais continuam fortes, cada verso é uma explosão de cores diante do ouvinte que passeia nos anos de 1980 com os pés no momento presente.  Mais uma vez a dupla Brown e Cia, que se repete ao longo do disco inteiro, aparece. O sample é de Gonna Fly Now e, cá pra nós, Cia arrepia. A cereja do bolo, nessa faixa, fica por conta do background histórico. A década de 1980 é conhecida como Década Perdida: marcada, até hoje, por ter sido o período de maior recessão econômica da América Latina, com dias em que a inflação chegou, no Brasil, a 1200%. Quanto Vale o Show? é todo veneno de Brown destilado em forma de narrativa de protesto, onde ele faz uma releitura do atual período econômico e deixa isso claro logo nos primeiros versos:

83 era legal, sétima série, eu tinha 13 e pá e tal
Tudo era novo em um tempo brutal

Análises sociais também são fortes:

Os malandro que era na miséria fizeram mal
Meu primo resolve ter revólver
Em volta outras revoltas, envolve-se fácil
Era guerra com a favela de baixo
Sem livro nem lápis e o Brasil em colapso

As linhas supra são um exemplo factual dos resultados obtidos por políticas públicas que não promovem educação, inclusão social  ou qualquer melhoria da qualidade de vida. Mais a frente, Brown mostra outro problema da falta de políticas de inclusão social:

Quanto baixo eu pude ir, pobre muito mal
O preto vê mil chances de morrer, morô?!
Com roupas ou tênis sim, por que não?!
Pra muitos uns Artemis, Benzina ou Optalidon
Tudo pela preza, irmão

E se as linhas acima ainda não estão claras, no fim da música, ele ratifica isso, morô?!

(..) eu curti
A vitrine Pierre Cardin, Gucci, Fiorucci, Yves Saint Laurent Índigo Blue
Corpo negro semi-nu encontrado no lixão em São Paulo
A última a abolir a escravidão

A rima destacada é a parte mais refinada da letra, talvez do disco. Brown saiu da teoria: as chances de morrer existem, disfarçadas na selva capitalista e lá está um corpo morto, negro. É difícil, para mim, achar uma expressão que qualifique essa rima. O eu-lírico une dois extremos, dois universos, que, possivelmente, nunca se encontraram, mas que se esbarram nessas linhas, como numa infeliz ironia. O requinte do poeta se sobressai nessa ocasião e os adjetivos ficam pequenos. A rima antitética constrói um conflito forte, aliás, antíteses marcam a letra: a vitrine e o lixão, vaidade e autodestruição, estão todos logo ali, em versos vizinhos -e um olhar atento questiona se só em versos.

E, falando em antítese, Coração Barrabaz e Eu Te Proponho compõem o mesmo recurso estético. A décima quarta faixa do álbum traz um assunto novo no discurso do Racionais: um desabafo sufocante sobre o rompimento de uma relação amorosa, que cria uma atmosfera densa e sombria. Na contramão disso, Eu Te Proponho, novamente sobre as mãos de Cia, encerra o álbum com um ar de sexo e romantismo, cheio de boas propostas e desejos ardentes. Damn! Brown mostra que tem sangue latino!

No fim das contas, as mudanças são bem perceptíveis e elas são mais estéticas do que conceituais: um processo de auto-percepção e de reinvenção. É válido dar bastante atenção ao caráter descritivo das letras: as palavras nos dizem muito, principalmente as que nos retornam imagens. Além disso, a sutileza das críticas faz desse, para mim, o álbum mais perigoso de todos, o mais danger. Fica o convite para uma nova audição do álbum completo. Abaixo o player:

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