O tesão de Don L pela estrada continua vivo em “Roteiro para Ainouz Vol. 3”, trabalho que dá início a “trilogia reversa” preparada por ele.
Por João Victor Medeiros
Há quase um ano atrás, Don L lançava o seu primeiro álbum: RPA Vol. 3, que é parte de uma “trilogia inversa”, segundo o próprio rapper.
Na época, tivemos apenas a divulgação da capa com o nome “Ainouz III” e alguns escritos em árabe, então logo começaram as teorias sobre o que significaria RPA. Em um tópico no Genius Brasil, em que lançavam teorias sobre, eu comentei o seguinte:
E com o lançamento do disco, veio a confirmação de que RPA significava mesmo “Roteiro para Ainouz Vol. 3” e, durante a audição, a semelhança entre as músicas e o trabalho do diretor cearense, gritavam cada vez mais.
Para contextualizar, Don L e Karim vem da mesma cidade: Fortaleza. Ambos saíram de casa com 16 anos, apesar da realidade díspare: o primeiro para construir seu barraco na Favela do Marrocos/Conjunto São Pedro e o segundo para morar em Brasília e posteriormente no exterior. Mas a maior semelhança entre ambos é a paixão pela estrada, no sentido mais poético e literal que isso pode ter.
Don L inicia sua trajetória em meados de 2005 com o grupo Costa a Costa, uma união entre os grupos Plano B e Brigada Sonora de Rua, cada um de uma costa de Fortaleza, formando assim o “supergrupo” que era integrado por Don L, Nego Gallo, Berg Mendes e Flip Jay. Em sua primeira mixtape, “Dinheiro, Sexo, Drogas e Violência de Costa a Costa“, podemos perceber a ambição de todos eles, mas principalmente de Don L e Gallo, que são as vozes do grupo. Os dois sabem que o Costa a Costa é um dos melhores grupos do Rap Nacional no momento e sentem a necessidade de ultrapassar as fronteiras de Fortal, de não serem apenas o “melhor grupo de rap do nordeste”, mas também sair do “gueto do gueto” e serem reconhecidos como merecem em todo o cenário nacional.
Destaque para a faixa “Enquanto Num Vim” que mostra o desejo pulsante do grupo.
Já nos filmes de Karim Ainouz, os personagens sempre estão em uma jornada, uma busca por algo – exceto Madame Satã, todos terminam em estradas. O que os move é o não caber nos espaços (assim como os caras do Costa a Costa), o não-pertencimento e o desejo de transcender os limites físicos. “Eu quero me sentir vivo”, repete Don no fim de “Se num for demais“.
Caso queira entender os conceitos de liberdade e destruição ao longo da obra de Don L, leia a análise Don L, Nietzsche, Tyler e a densa mensagem de Gasolina e Fósforo
O terceiro longa-metragem do diretor cearense se chama “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo“. Nele, temos a história de um geólogo que é enviado para o sertão nordestino para verificar a construção de um canal que atravessará o semi-árido. Abandonado pela sua esposa e desiludido, o filme vira uma documentação da incessante vontade desse personagem de reencontrar seu eixo. A mesma inquietação que Don L apresenta em seu mais recente disco.
No RPA Vol. 3, Don L aprofunda mais no que se passou entre a mudança dele de Fortaleza para São Paulo, algo que não foi tão explorado pessoalmente em Caro Vapor, Vida e Veneno de Don L, a mixtape que está entre o trampo do Costa a Costa e e seu último trabalho. “Eu deixei o nordeste, há dois anos com uma sede de secar a Sabesp”, fala Don L na primeira faixa. Como comentado acima, a mesma vontade que motiva os personagens de Ainouz. Don L faz mais alguns comentários sobre o cenário do rap nacional nessa música e em “Fazia Sentido“, mas é em “Aquela Fé” que adentramos melhor o estado de espírito do rapper em êxodo em São Paulo, querendo sua fé de volta, a mesma que tinha há 10 anos atrás quando lançava a mixtape do Costa a Costa. Não a toa, Nego Gallo está na faixa.
“Eu percebo que a diferença principal daquele quarto de favela pra esse apartamento [o apartamento em São Paulo] não tá no reboco da parede, nem na vista, nem na cidade, nem em nada em minha volta, mas num tipo de fé ingênua que aquele “velho eu” tinha, e percebendo que perdi em algum ponto do caminho, eu sinto a necessidade dela de volta.” comenta Don L em entrevista para a Red Bull. E continua: “Eu tinha que trazer o Constantino nesse som. Eu sempre chamei o Gallo de Constantino [Constantine, o Hellblazer], pela intensidade que ele lida com anjos e demônios na vida dele, e por ser um cara que tem uma fé que sempre me intrigou, que parece que persegue ele e não o contrário. Exorcista de favela. É o cara que o irmão pecador quer trocar uma ideia quando o assunto é muito denso pro pastor. Então a gente faz outro retorno a Fortaleza, na pele de um cara que tava comigo lá em 2007, e que em 2017 tá trampando no resgate de almas, literalmente, nas ruas de Fortaleza, ensinando redução de danos pra viciados em pedra.”
Em “Cocaína” temos o primeiro ponto de virada do roteiro de Don L para um filme de Karim Ainouz. Após o êxodo e o longo caminho de 10 anos na estrada do nordeste para São Paulo, temos o nosso personagem no meio do caos da maior cidade do país, refletindo que apesar da incessante busca, a sensação de não-pertencimento ainda é presente ou tão intensa quanto antes. Então ele precisa destruir todas suas concepções para partir em busca de novas ideias, novo ar, nova vida. “Ultimamente tenho pensado que a gente precisa morrer mais e envelhecer menos, no sentido de aceitar e até provocar mais das pequenas mortes em nós mesmos. Deixar velhas noções morrer e novas experiências serem bem vindas.” pontua Don L para o Rimas e Batidas.
Em “Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo”, o personagem se joga nas experiências das mais diversas a fim de esquecer sua ex-esposa. Um refúgio, seja em encontros sexuais ou festas em forrós, como Don L prossegue com “Mexe Para Minha Cam” até renascer com o “bom dia” de “Ferramentas”.
Nesse momento, nosso personagem se encontra no fundo do poço, porém com a vontade de mudança característica nos personagens de Ainouz, seja o geólogo de “Viajo…“, a protagonista do “Céu de Suely” ou “Madame Satã“:
“Eu preciso fazer um bagulho, eu preciso disso
Eu preciso recomeçar e acabar com tudo que eu era
Eu juro que será um puta movie”
– Don L em “Se num for demais“
E então, Don utiliza seu ótimo leque de referências a cinema que, contextualizadas, não são um mero name-drop de filmes e cineastas cult.
Ao mencionar que sua vida seria um loop do Fight Club porém dirigido por Ainouz, Don L reafirma sua vontade de destruição para dar lugar a uma vida nova porém com todas as consequências de ser um cidadão do terceiro mundo vindo do gueto do gueto. Por isso Karim seria o mais apto a dirigir um filme de sua vida – longe do romantismo elitista do escritor Jack Kerouac em seu livro “On The Road” e muita treta até mesmo para Tarantino, diretor que explora a violência em seus filmes. Nesse ponto, devemos lembrar que o nosso protagonista Don L vem de Fortaleza, a sétima cidade mais violenta do mundo. “Se num for demais” é a faixa na qual é resolvido o conflito do primeiro (ou terceiro) filme, deixando “Laje das Ilusões” como o desfecho que dá abertura para o início da segunda parte da trilogia.
Nos filmes de Karim Ainouz, é sempre muito marcante a sexualidade e a presença do corpo de seus personagens, que estão sempre em contato com outros corpos: cantando, dançando, comendo, fazendo ações vitais. Em entrevista para Revista de Cinema, o cineasta pontua: “Em ‘Madame Satã‘, pra mim, o personagem estava vivo não por questões místicas, mas porque lutou a vida inteira, fisicamente, dançava etc. Falaram da questão do corpo. Não tinha pensado nisso. Depois me dei conta de que adoro filmar corpos. Acredito muito no momento do aqui, agora. Não há coisa melhor do que comer, fazer amor, dançar, então, acho importante documentarmos isso e o cinema é muito potente para tal”.
Nosso roteirista e protagonista, Don L, encerra o seu primeiro filme com uma música tão pulsante quanto as cenas de sexo e dança de Karim Ainouz. A música “Laje das Ilusões” ganhou belíssimo clipe dirigido pela fotógrafa Autumn Sonnichsen, parceira de Don em outros trabalhos e especialista em fotografar o feminino.
Após toda a destruição que passou depois da primeira metade do roteiro e o reconhecimento disso na oitava faixa, Don L está pronto novamente para renascer mesmo que movido por um sonho/ilusão. É a sede de vida ilustrada pela dança de competentes bailarinas, em uma coreografia que é “meio luta, meio sexo”. Segundo Don L em entrevista para a Rolling Stones, “a dança é arte que também é um esporte. No sentido de ser bela e violenta, de maltratar o corpo até o limite da dor, e superar a dor, transcender o corpo, não aceitar o limite, não reconhecer o corpo como limite (…)”, a mesma rebeldia com os muros e limitações que apresentam os personagens de Karim e também Don L ao longo da carreira.
Nosso protagonista continuará sua busca incessante e em certos momentos, inalcançável, mas com a consciência de que o caminho é que vale a pena, “já que o destino é sempre incerto”. Isso nos deixa instigados para continuar acompanhando esse road movie nos seguintes volumes da trilogia “Roteiro para Ainouz”.