Transcrição de entrevista cedida por KL Jay ao Gluck Project.
Por Fred Di Giacomo em 12 de Julho de 2015
Acredite em você, nos seu potencial, em como você vê as coisas. Mesmo que o sonho não dê, você deve continuar acreditando em você, KL Jay
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Descobri os Racionais Mc’s meio por acaso, quando ainda tinha 11 ou 12 anos, lá em Penápolis, cidadezinha em que me criei, no sertão paulista. Lembro uma vez que minha irmã estava brincando com seu radinho colorido e sintonizou, sem querer, “Fim de semana no parque”, um relato revoltado e realista do cotidiano das quebradas, que afirmava “Na periferia a alegria é igual/ é quase meio dia a euforia é geral/ É lá que moram meus irmãos, meus amigos/E a maioria por aqui se parece comigo”. Parecia a trilha sonora perfeita para as ruas esburacadas e cheias de botecos e biqueiras da Vila São João – região que cercava minha casa. Em outra ocasião, também molecote, eu estava fuçando no primeiro computador que meus pais tinham comprado. Minha mãe tinha desistido de dar aulas na escola pública em que trabalhava, após ser xingada e quase agredida por um aluno. Com o dinheiro da demissão voluntária, ela comprou um PC bacana, que vinha acompanhado de um pré-histórico cd-rom do Almanaque Abril. No verbete “Racionais Mc’s”, dava para escutar um trecho sinistro de “Homem na Estrada”, onde eles cantavam “acharam uma mina morta e estuprada/ deviam estar com muita raiva/ ‘mano, quanta paulada’/Estava irreconhecível, o rosto desfigurado./ Deu meia noite e o corpo ainda estava lá, /coberto com lençol, ressecado pelo sol, jogado./ O IML estava só dez horas atrasado.”
Essa duas músicas eram do disco “Raio-X Brasil (1993)” e aquela banda ficou na minha cabeça, cheia de mistério, até que, em 1997, eu ganhasse o recém-lançado “Sobrevivendo no Inferno” que escutei, tenso, com o ouvido colado na caixa de som prestando atenção em cada história que os cronistas Mano Brown, Edi Rock e Ice Blue contavam em forma de rap. Eram histórias de crime, violência policial e pequenas anedotas da periferia. Tão boas quanto um livro do Rubem Fonseca e tão parecidas com a vida dos meus vizinhos de bairro, que você ficava em dúvida se aquelas letras eram ficção ou realidade. No encarte, “50 mil manos” negros e de boné posavam para fotos clicadas em favelas e subúrbios do Brasil. Completamente diferente dos encartes de bandas de rock que eu estava acostumado a ouvir. Aquilo era a realidade em forma de música, algo que só chegaria aos cinemas anos depois, em versão mais estilizada, com “Cidade de Deus” e que nunca ocupou, como deveria, seu espaço na televisão e na grande mídia.
De lá para cá, minha vida mudou muito (para melhor), mas eu nunca deixei de acompanhar os discos dos Racionais e suas letras rimadas em cima dos scratches do KL Jay. E uma coisa que sempre admirei no grupo foi seu incentivo, em meio a tantas histórias de tretas e tiros, para que os jovens buscassem ler, estudar e se informar. Por isso, quando resolvi criar a campanha #livrosmudamvidas (onde pedimos para várias personalidades indicarem que livros mudaram suas histórias), eu resolvi tentar falar com o grupo. Quem atendeu minha ligação foi o simpático e esperto Kleber Geraldo Lelis Simões – o KL Jay, DJ do grupo e apresentador do Estamos Vivos – que está na casa dos 45 anos. Era para eu perguntar apenas que livro tinha mudado sua vida, mas o papo acabou se estendendo para educação, sonhos, vegetarianismo e terminou em boas risadas.
Com vocês, agora, KL Jay inaugurando nossa campanha #livrosmudamvidas. E, você, que livro mudou sua vida?
Fala, Kleber, beleza? Estamos fazendo uma campanha no Glück chamada #livrosmudamvidas e gostaríamos de saber qual foi o título que mudou sua vida.
Olha, foram dois livros, na real. A autobiografia do (ativista negro norte-americano) Malcom- X e “Viva Natural” (livro de 1982, da escritora Eliza Biazzi), sobre alimentação e uma vida mais saudável. Foi esse livro que me tornou vegetariano, o que sou até hoje. Isso faz muito tempo, eu li o “Viva Natural” há mais de vinte cinco anos.
E como você descobriu o livro do Malcom-X?
Putz, na verdade foi uma onda forte que teve, né? Acho que foi através do Geledés – Instituto da mulher negra, há mais de 20 anos. Tinha muita gente falando do livro no movimento (hip-hop), nas letras de rap. Muitas bandas citando nas músicas.
O (rapper) Dexter também falou pra gente da autobiografia do Malcom-X. Ela influenciou muito as músicas dos Racionais?
Influenciou mais no começo, né? O livro foi mais influência na época de “Voz Ativa” (música do EP “Escolha seu caminho”, de 1992) e na época do “Sobrevivendo no Inferno” (1997), também. Hoje em dia, não, hoje o que mais infuencia nossa música é a vivência, né? O dia-a-dia, as coisas que a gente vê e vive. As coisas da rua…
Falando no “Escolha seu caminho”, na capa desse disco vocês já mostravam de um lado a opção das drogas e das armas e do outro a opção dos livros e dos estudos, né? Qual a importância que você vê na educação pro Brasil? Acha que a falta de investimento na área é intencional?
Cem por cento! Educação é cem por cento importante e a falta de investimento é cem por cento intencional. Ainda somos colônia, né? No Brasil são poucos que se beneficiam. São poucos que se dão bem. Com a educação ia mudar tudo.
E como os Racionais procuram estimular a leitura e a educação?
A música formenta, né? Os artistas incentivam (a educação) nas músicas, nos shows que a gente faz, nas entrevistas que a gente dá. A gente procura falar do assunto, incentivar o pessoal.
E vocês não pensam em lançar um livro do Racionais?
Olha, por enquanto não pensamos em lançar, mas quem sabe… Tem muita história, né? Nós temos muitas entrevistas com uma pessoa de confiança nossa, que poderiam render um livro. Um livro com bastante coisa, bastante história.
Última pergunta: em várias músicas dos Racionais – como a “Vida é desafio” – vocês têm uma mensagem positiva estimulando as pessoas a acreditarem no sonho delas. No nosso site, a gente fala disso também, mas muitas vezes recebemos críticas de pessoas do tipo “ a vida não é Hollywood” ou “do que adianta eu correr atrás se o mundo é fdp”. Vocês já tiveram que lidar com esse tipo de crítica? O que você diria nessa situação?
A maioria dessas críticas tem um teor bem ignorante, de gente que não sabe o que está falando. Faltam argumentos. Há dois tipos de crítica: a boa e a ruim. Agora, a maioria dessas críticas são ataques pessoais, agressões verbais. Elas não têm um fundamento. Deixa eu explicar melhor: é mais ou menos igual essa questão da redução da maioridade penal. Você é a favor? Por quê? Você é contra? Por quê? Não adianta ficar falando “queria ver se fosse com você, com seu filho”. Tem que ter argumentos. Criticar sem fundamentos é ignorância.
“A vida é desafio”, Racionais Mc’s
E sobre acreditar nos sonhos?
A gente está sempre sonhando, né? Tanto na vida real, de dia, quanto quando estamos dormindo. Agora, eu costumo dizer: “acredite em você, não no seu sonho. Porque às vezes o sonho não dá certo. Por exemplo, eu tenho sonho de o mundo todo ser vegetariano. De o mundo inteiro não comer mais carne (risos). Mas isso é sonho, né? (risos).Então eu prefiro dizer: “acredite em você, nos seus potenciais, em como você vê as coisas. Mesmo que o sonho não dê, você deve continuar acreditando em você”
Pô, então, seu sonho é o mundo todo virar vegetariano?
Um deles, né? (rindo) É que eu vejo que esse mundo é muito louco, né? Parece que a gente tá parado, sei lá, nas mesmas coisa que eram feitas há mil, dois mil anos atrás. A gente vive do mesmo jeito, né? Um querendo foder o outro…
Mas tem uns que querem ajudar, também, né? Acho que temos que fazer as coisas (de forma) diferente, viver em paz. É por aí.