Todxs estão até agora sentindo o grande impacto do visual album de Beyoncé: o conceitual Lemonade, lançado no último fim de semana (23). O fenômeno foi anunciado desde a divulgação do primeiro single Formation, vídeo-manifesto de sua nova e incrível fase artística que se apresenta como um divisor de águas em sua carreira. A performance histórica nos 50 anos do Super Bowl, na qual uma tropa de mulheres negras bailarinas vestidas de Panteras Negras incendiaram e demarcaram seu espaço em uma das celebrações mais tradicionais da cultura estadunidense causou grande repercussão e tumulto nas mídias de comunicação e redes sociais no mundo inteiro, fato que orgulhou não só as Feministas Negras, como também a memória do partido revolucionário que também comemora 50 anos. Classificado por muitxs como um álbum ativista e militante das questões feministas negras, Lemonade é o clímax do devir-Beyoncé em busca por sua descolonização e empoderamento. Escrever sobre a concepção estética e musical de qualquer álbum é sempre um grande desafio, e quando se trata de Beyoncé se torna um exercício ainda bem mais complexo, principalmente quando se parte do lugar no qual os privilégios herdados pelo patriarcado e pelo racismo histórico tornam nossa visão turva e, até mesmo, cega.
Há algum tempo o formato de visual album é uma escolha particular de Beyoncé, como podemos observar através do álbum anterior, o BEYONCÉ (2014). Há o desenvolvimento de um processo intenso e sofisticado de construções de imagens que não funcionam como simples alegorias, e sim em um sistema extremamente codificado. Aspectos performáticos explorados como o erotismo e a sensualidade são lidos e consumidos na maioria das vezes de maneira bastante equivocada. A celebração e exaltação do corpo da mulher negra sempre foi uma prioridade não por conta dos fatores mercantis que comercializam os corpos das mulheres negras como produtos de consumo e posse dos homens, mas sim pela necessidade de ressignificação e desconstrução dos estereótipos sobre a mulher negra, que integram o sórdido imaginário coletivo racista que ainda nos persegue como capitães do mato fantasmas dos sombrios tempos coloniais.
As práticas erótico-sexuais das mulheres negras sempre foram historicamente oprimidas e subalternizadas pela experiência traumática da escravidão e da diáspora africana, carregando até hoje profundas cicatrizes das relações de poder engendradas pelo colonialismo e pelo patriarcado europeu que indiciou, classificou, ordenou, hierarquizou e definiu da maneira mais estigmatizante e opressora o corpo negro feminino. As impactantes experiências de escravização das populações negras corroboraram decisivamente para a construção do imaginário coletivo racista que renegou por séculos o poder cognitivo, a racionalidade e a capacidade intelectual principalmente das mulheres negras. Segundo a intelectual negra e ativista feminista bell hooks, o sexismo e o racismo do sistema patriarcal capitalista de supremacia branca atuaram conjuntamente para a construção de representações e estereótipos sobre a mulher negra, vista sempre como um indivíduo predestinado à servidão. O sistema escravocrata europeu coisificou e animalizou o corpo e a psiquê dos povos africanos e afrodescendentes, vistos como a essência do instintivo, primitivo, selvagem, grotesco, monstruoso. Imagens explicitamente presentes e recorrentes do imaginário coletivo racista, como a mulher negra hipersexual, procriadora e serviçal são manifestações da real situação das mulheres negras em relação às hierarquias sociais: fatores racistas, sexistas e classistas de opressão e exclusão atuam de maneira conjunta, simultânea e determinante para que as mulheres negras sejam extremamente estereotipadas e inferiorizadas ao status de seres humanos incompetentes, desqualificados e deficientes por natureza. Assim, mulheres negras são condicionadas ao trabalho abnegado (trabalhos servis, como o trabalho doméstico e sexual), no qual a força física prevalece e o trabalho mental e intelectual não são prioritários.
O processo intenso e gradual de subversão de tal iconografia racista, sexista e machista incitado por Beyoncé não é uma exclusividade de sua atual fase. Os questionamentos sobre os papeis de gênero e as visões sobre seu corpo e sua existência enquanto mulher e negra sempre estiveram presentes em sua obra audiomusical. O problema é que as feministas brancas e os homens de maneira geral sempre decodificaram o discurso de Beyoncé a partir de seus lugares e perspectivas de observação, asfixiando sua voz e aprisionando suas atitudes que entram em ressonância devastadora com Limonade. A maior aproximação com o pensamento feminista, a exemplo da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, e a grande preocupação e envolvimento de Beyoncé e Jay Z com as questões e problemas da população negra estadunidense em meio ao genocídio e à ressurgência dos movimentos negros como o Black Lives Matter, liderado pelo ativista negro e gay DeRay Mckesson (Bey e Hova doaram cerca de 6 milhões de dólares para o movimento) foram fatores de grande relevância para que o atual álbum seja um documento histórico sonoro e visual do início do século XXI, no qual as questões sobre raça e gênero ainda (!!!) pesam como os corpos infectos, opressores e estupradores do patriarcado colonial sobre nossas Ancestrais negras escravizadas. Através dos meus contatos e relacionamentos pessoais e intelectuais imagino o quanto é árduo e doloroso para as mulheres negras o processo de descolonização de seus corpos e suas almas e a superação de uma tradição herdada tão forte que é a escravização colonial. Beyoncé mais forte e poderosa do que nunca convida não só as mulheres negras, mas todxs as pessoas a uma dialética do espelho, na qual possamos enxergar nossos corpos e todas as marcas, feridas e cicatrizes da corrupção da nossa materialidade e espiritualidade pelo colonialismo e patriarcado europeu.
A afirmação da ancestralidade negra e seu legado é o principal foco do visual album de Beyoncé e tal aspecto ratifica o caráter político de sua arte agora bem mais explícito, pois para muitxs militantes políticos os modelos de ativismo e luta devem seguir os seus manuais de instruções, desrespeitando as subjetividades e particularidades presentes intra e extra-movimentos. Não é em vão, por exemplo, que elementos naturais como a terra, a água e o fogo dominam a fotografia do material audiovisual. Refletindo ainda sobre o pensamento de bell hooks, as mulheres, em especial as mulheres negras, eram estereotipadas como a expressão da própria natureza instintiva em sua selvageria impetuosa, que deveria ser dominada, desbravada e controlada pelos homens, únicos detentores (HAHAHA) da racionalidade e cultura. Nos vídeos de “Pray You Cath Me” e “6 Inch” Beyoncé domina e manipula os elementos da natureza como a expressão da força e do poder feminino negro, simbologias que podem ser comparadas às Orixás do Candomblé como Oxum e Yansã, ressignificando e subvertendo o jogo simbólico estabelecido pelas relações hierárquicas de poder.
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É necessário ressaltar o trânsito de Beyoncé nos espaços públicos, como no clipe “Hold Up”, no qual com um bastão de beisebol quebra várias janelas de carros e hidrantes enquanto é observada por câmeras de segurança, em uma performance tranquila e divertida que problematiza a virilidade e a agressividade, valores sempre relacionados às masculinidades. Em tom provocativo e desafiador, Beyoncé termina a destruição dos carros dirigindo um carro imenso sobre eles, dominando os espaços outrora habitados histórica e exclusivamente por homens, que é a rua. O espaço privado da casa e do lar é dominado por mulheres, que cozinham, convivem, socializam e confraternizam em um grande banquete no clipe de “Love Drought”, momento do visual album no qual o discurso da união e solidariedade entre as mulheres negras é exaltado para a luta política e sobrevivência. Lemonade é uma incursão no mundo habitado e dominado pelas mulheres negras, abordagem que só revela a matrifocalidade das comunidades que as mesmas integram e sua imensa importância sociocultural. É muito forte as mães de homens negros assassinados pela violência policial segurando as fotografias de seus filhos mortos nas cenas de “Forward”, revelando a dor incalculável que é ser mãe negra em uma sociedade genocida. Alguns dos figurinos usados por Bey remetem às indumentárias que as mulheres negras vestiam na era colonial, reconfiguradas e reinventadas em uma estética simultaneamente anacrônica e cosmopolita, como se tivessem de fato sido herdadas por suas Ancestrais. Costumo dizer que, como as vestimentas e indumentárias, o racismo e as fobias tomam novas cores e texturas, fazendo com que o passado seja uma roupa que herdamos e vestimos até hoje. Beyoncé me faz retomar um provérbio do povo africano Yorubá que diz que “as histórias se repetem”, porém de outras formas e em outros contextos. Os cabelos nem precisa comentar, né? “I like my baby hair with baby hair and AFROS”! A profusão de turbantes e penteados como tranças e black powers é maravilhosa, instigando ao máximo o empoderamento crespo.
As abordagens sobre a ancestralidade negra não param por aí. As cenas de vídeos caseiros e fotografias da família de Beyoncé também compõem o visual album em uma edição que configura também um discurso sobre a restauração da família negra enquanto instituição. O tráfico de africanxs, a escravização colonial e a diáspora atlântica fragmentou inúmeras famílias negras que foram transplantadas para outros espaços e contextos de exploração compulsória do trabalho forçado nas Américas. As imagens felizes e emocionantes de amor e afeto de Beyoncé com seus familiares em “Daddy Lessons” e “Sandcastles”, por exemplo, revelam o fracasso do projeto histórico de aniquilação das famílias negras pelas estruturas socioculturais marginalizadoras e subalternizadoras, tendo até o direito e capacidade de amar usurpado, como também argumenta bell hooks. Questões de vida e de morte são postas através de flashs de memória, estabelecendo conexões entre o passado e o presente, pois para nós negrxs o passado deve ser sempre reverenciado e nossxs Ancestrais celebradxs: sem elxs o presente e a existência não possuem sentido.
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Em relação às sonoridades do álbum, Beyoncé apresenta o quanto sua estética musical está fundamentada nas matrizes da música negra estadunidense, aspecto que mais uma vez revela seu compromisso com a sua ancestralidade. Fãs dividiram-se em opiniões em relação à estética musical proposta principalmente por causa do choque estético provocado pelas faixas impecavelmente produzidas pela própria Queen B: há o trânsito livre entre os gêneros e ritmos, como rock, gospel, soul, country, música jamaicana e o próprio rap, caracterizando um álbum de fortes influências da musicalidade da diáspora negra, que foi constituída pelo forte hibridismo sonoro provocado nas experiências negras de transplantes, migrações, deslocamentos e das colisões da cultura negra com a cultura colonial imposta (leia-se aqui cultura em seu significado e dimensão plural, diverso, móvel e fluido). Distorções e batidas fortes potencializam as letras das músicas (que não são centralizadas nas análises do álbum nesse artigo), também compostas pela Beyoncé e parcerias. Os feats. com The Weeknd, Kendrick Lamar (que feat… que feat!), Jack White (The White Stripes) e o desconhecido James Blake (pelo menos por mim, risos) são breves e curtos: afinal, a voz da mulher negra deve prevalecer em meio a tantos silenciamentos femininos na cultura Hip Hop. Beyoncé explora as dimensões histriônicas da música negra estadunidense, ampliando as proporções de sua arte que por si só já é grandiosa.
Ainda muito impactado, porém muito satisfeito enquanto fã da Queen B (acredito que deu para perceber, risos), Lemonade (limonada), ao invés de servir como um método de embranquecimento outrora utilizado na escravidão estadunidense, mata nossa sede insaciável por representatividade e justiça social. Como em “6 Inch” (minha faixa preferida do álbum), o fogo das lutas dos ativismos feministas negros nos purificará dos colonialismos e patriarcalismos. Nossos corpos diaspóricos, cambiantes e nômades que transitam em encruzilhadas vermelhas e pulsantes, nas quais o sangue historicamente foi derramado pela escravização negra, serão vertidos na colorimetria da ira e da revolta. Beyoncé é a lâmpada que ilumina o pensamento pós-colonial, problematizando o Feminismo Negro enquanto uma urgência. Descubram os espelhos, abri os olhos e vede.
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.