Lançado ontem (8/2) nas plataformas digitais, o EP Classe Merda é o resultado do processo artístico de parceria entre os rappers Joe Sujera e Tristo, que se revelam verdadeiros alquimistas do Rap transmutando rimas e batidas em ouro. Experimentando elementos sonoros e poéticos em fórmulas complexas, Classe Merda funciona como um poderoso antídoto contra a toxicidade da cena underground atual, um elixir que mantém o Rap Nacional ainda vivo e pulsante. A experiência de audição de cada faixa que compõe o EP é única, tornando obsessivo o exercício do replay. Os beats são produzidos por Yuri Pontes, DJ Tadela e Martinz, e a escatologia é a metáfora que atravessa a proposta estética do trabalho.
Escatologia é uma espécie de conjunto de narrativas que tratam do destino final do ser humano e do mundo, como as narrativas proféticas, messiânicas e apocalípticas. São narrativas futurísticas que se preocupam em projetar o não vivido, o por-vir. Além disso, a escatologia se refere aos processos biológicos e orgânicos da anatomia do corpo em expelir excrementos. A metáfora da escatologia em Classe Merda, apesar de possuir um aspecto irônico presente de maneira bastante frequente na obra fonográfica de Sujera, propõe rituais de purificação e exorcismo de demônios. Nas rimas de Sujera e Tristo os sujeitos não estão incólumes à sarjeta e à lama social, imersos em incertezas, paradoxos e contradições.
A track “Na Estrada” é uma espécie de road rap que aborda a relação do indivíduo com a transitoriedade da vida e as dinâmicas dos devires. O sujeito pensado por Sujera e Tristo se aproxima do sujeito nômade proposto pelo filósofo francês Deleuze, o qual só possui sentido a partir da instabilidade, dos fluxos ininterruptos para os outros e para dentro de si, da desterritorialização. Na narrativa, o devir é catalisado pela necessidade de sobrevivência, pelo culto secreto dos sonhos, através de deslocamentos e fluxos de memória que produzem a ilusão e o desejo vão da estabilidade. O sujeito pensado por Sujera e Tristo só possui sentido na mecânica do movimento e na potência de sua mutabilidade, pagando o preço do mal-estar de sua inconstância e cigania. Na track o indivíduo se apresenta em sua plena vulnerabilidade, um corpo impregnado da imundície das estradas não cartografadas do destino. Aqui sujar-se é a condição do devir.
O mal-estar se agrava na faixa “Quem Sou Eu”, na qual Sujera e Tristo apresenta um sujeito em um processo de fragmentação identitária, uma espécie de abismo subjetivo que frequentemente o mesmo é lançado. Em tempos pós-modernos nos quais definições, classificações e rotulações são obsoletas, a mercantilização das identidades provoca fascínios de estabilidade e plenitude ilusória em alguns, porém frustrações e neuroses em outros. Os demônios do sucesso e do fracasso atormentam de maneira assustadora aqueles que possuem a consciência das regras dos jogos de poder, que limitam, normatizam, disciplinam e oprimem. A track é um diagnóstico da nossa loucura cotidiana que aprendemos a medicar com gratificações substitutivas, nos termos de Freud, transformando a sarjeta em um templo de busca pela redenção. Aqui a sociedade é que torna o indivíduo imundo com sua própria merda.
Na track “Augusta” o sujeito presente na narrativa de Sujera e Tristo chafurda na lama em busca das gratificações substitutivas para seu mal-estar. São nos becos infectos da Rua Augusta, território da boemia e da esbórnia paulistana, que o entorpecimento dos sentidos causa a letargia necessária para o corpo e a alma. As drogas, a amizade, o sexo, o dinheiro tentam estancar as feridas existenciais do indivíduo que se encontra em estado de putrefação subjetiva. Aqui o indivíduo se auto agencia em busca dos prazeres efêmeros enquanto rota de fuga dos esgotos. A degradação de si toma uma proporção lírica e a imundície dos vícios assume um caráter sublime. Sujar-se se torna uma necessidade, e mesmo em degradação o coração ainda pulsa.
A face irônica e às vezes ácida de Sujera se revela nas linhas do última track do EP “Rap Para Rappers”, que funciona como uma crítica à cena underground atual, na qual egos estão em permanentes tensionamentos e andaimes para escalada de uma hierarquia errante estão sendo levantados. Constitui uma reflexão em metalinguagem sobre a arte do Rap e os questionamentos que a circulam insistentemente. Porém, o que chama mais atenção são as linhas de Tristo que desencadeiam de maneira incrível a sequência narrativa do EP: na faixa, o indivíduo percebe que é efeito de uma sociedade podre, reconhecendo sua própria imundície e refletindo sobre como alguns corpos podem ser mais sujos que outros. Problemas de classe, raça e gênero estão impregnados no corpo social e são difíceis de lavar com o sabão dos privilégios. A sociedade se torna um antro no qual não estamos sozinhos.
Classe Merda não é recomendado para corpos higienizados, desinfetados e desodorizados. É uma ode à podridão de nós mesmos.
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.