Em tempos de intolerância religiosa epidêmica no Brasil, falar em música gospel é quase um insulto para nós que sofremos com os discursos e ataques de ódio de Felicianos, Malafaias e outros monstros espalhados por aí. A música gospel que conhecemos hoje é altamente contaminada pelos neopentencostalismos que a transformaram em um produto de potencial mercadológico para o consumo do público evangélico, além de um instrumento potente de evangelização e arrebatador de almas (e dízimos) para as igrejas. Vivi grande parte de minha infância em uma igreja batista e, além de ser muito grato pela formação musical que tive sendo um dos solistas do coral e do grupo de louvor infantil, aprendi muito o quanto a música é sagrada e espiritual. Porém, só fui conhecer o verdadeiro gospel bem depois, quando descobri que as matrizes da música negra dos Estados Unidos provocaram um processo de reinvenção do protestantismo e o encontro dxs negrxs com um Jesus Cristo muito diferente daquele que pregavam nos dias de domingo.
Para quem filou as aulas de História, os Estados Unidos é um país que, como o nosso, foi estruturado socioculturalmente através da experiência colonial europeia. A colonização britânica foi a responsável pela propagação do cristianismo protestante na América do Norte, que surgiu após os movimentos de Reforma liderados por Lutero na Alemanha do século XVI. As críticas dos sacerdotes reformistas aos dogmas (verdades absolutas) da doutrina religiosa e à corrupção da Igreja Católica provocaram um período de grandes transformações no cristianismo, originando o protestantismo que assumiu várias outras vertentes por toda Europa, como o anglicanismo na Inglaterra. Não satisfeitos com os efeitos da Reforma, protestantes radicais e mais rígidos se revoltaram contra a Igreja Anglicana através da Revolução Puritana no século XVII, defendendo o calvinismo e rejeitando as persistentes influências da Igreja Católica. Reprimidos e perseguidos pela inquisição britânica, os puritanos começaram a migrar da Inglaterra para outros territórios com maior liberdade para suas ideologias e práticas religiosas. Em novembro de 1620, 102 peregrinos ingleses desembarcaram em Plymouth, uma das colônias da Nova Inglaterra situada geograficamente na ponta nordeste dos Estados Unidos. Como diz o astronauta interpretado por Matt Damon no filme Perdido em Marte, se você cultivar plantas em algum lugar, você o coloniza: após uma grande colheita agrícola no século XVII, o governador John Winthrop promoveu uma grande celebração para dar graças ao Senhor, instituindo o Dia de Ação de Graças comemorado até hoje toda quarta quinta-feira do mês de novembro nos Estados Unidos, transformado em feriado nacional no ano de 1863, pelo presidente Abraham Lincoln. A violência colonial e o genocídio indígena estadunidense foram substituídos pelo mito do banquete de confraternização e união das raças, instituindo a ética protestante puritana como um dos instrumentos de dominação, opressão e extermínio em massa de inúmeras etnias indígenas e escravização de africanos.
O capataz em uma mão segura o açoite, na outra a Bíblia. Enquanto o seu assistente arrasta pelo chão e amarra no tronco de uma árvore a mulher negra escravizada para ser torturada, recita os versículos do livro de Gênesis, adaptados por Quentin Tarantino no roteiro do filme Django Livre: “E Deus os abençoou, e Deus lhes disse: Frutificai e multiplicai-vos, e enchei a terra, e sujeitai-a; e dominai sobre os peixes do mar e sobre as aves dos céus, e sobre todo o animal que se move sobre a terra.” (Gênesis 1:8). A escravização atlântica das populações africanas foi “justificada” não só pela Igreja Católica, mas também pelo protestantismo cristão. A maldição de Cã, um dos mitos presentes no livro do Gênesis, moveu por séculos a assustadora máquina da escravidão colonial e estabeleceu hierarquias de poder fundamentadas no conceito de raça. Como argumentam xs historiadrxs brasileirxs Mary Del Priore e Renato Pinto Venâncio:
“(…) O livro do Gênesis, no qual bebia a cultura clerical européia, revela que Cã, segundo filho de Noé, exibiu-se diante de seus irmãos, gabando-se de ter visto o sexo de seu pai, quando esse se encontrava bêbado. Para castigá-lo, o patriarca amaldiçoou Canaã, filho de Cã; ele e sua descendência se tornariam servidores de seus irmãos e sua descendência. Eles imigraram para o sul e para a cidade das sexualidades malditas: Sodoma. Depois atingiram Gomorra. Lendas contam que os filhos dos amaldiçoados foram viver em terras iluminadas por um sol que os queimava, tornando-os negros.”
A mitologia bíblica, suas interpretações e manipulações serviram de álibes para a escravização das populações africanas no processo de colonização da América, que até hoje encaramos como verdades absolutas e inquestionáveis. O estabelecimento histórico de hierarquias raciais através do cristianismo europeu instituiu o exercício frequente e cotidiano de subjugação, opressão e exploração física e simbólica das populações negras, seja através do trabalho escravo compulsório, seja através dos discursos eurocêntricos e racistas sobre nossxs Ancestrais, o que o sociólogo negro Paul Gilroy chama de terror colonial. O terror colonial é um grande dispositivo de dominação criado principalmente por argumentos religiosos cristãos, que classificavam negrxs através de estereótipos raciais como seres pagãos, demoníacos, irracionais, animalescos, idólatras e supersticiosos por natureza, os quais deveriam ser exorcizados e purificados pelo sistema escravocrata, e óbvio, através da conversão forçada ao cristianismo.
Nos Estados Unidos a relação entre colonizadores e colonizados era bastante segregada e fragmentada. Os espaços sociais entre negros e brancos eram rigidamente separados para evitar o processo de miscigenação racial através das relações afetivo-sexuais. Ao contrário do Brasil, no qual o processo de miscigenação racial foi muito mais intenso por causa dos estupros frequentes de nossas Ancestrais negras escravizadas, eram extremamente proibidos os relacionamentos interraciais na experiência colonial estadunidense. A regra racista da one drope rule (única gota de sangue) determinava que a negritude fosse construída através do contato genético, não simplesmente pela aparência física, como se fosse uma degeneração biológica através da miscigenação. Mesmo com os hipócritas valores da ética protestante de amor, fraternidade e união, as práticas religiosas também foram segregadas: nos templos protestantes negrxs escravizadxs assistiam aos cultos e sermões em espaços separados dxs colonizadorxs ou em igrejas específicas para negrxs. Apesar de Deus não fazer acepção de pessoas, o seu culto era diferenciado e os casamentos eram intra-raciais. Após a abolição do trabalho forçado africano, o pânico racial foi estabelecido e as leis Jim Crow reconfigurava o regime racista através da legislação, solidificando as fronteiras raciais do apartheid estadunidense.
São nas igrejas que negrxs vão para socializar, desabafar, se divertir, celebrar a vida e a morte e gritar suas angústias para o Deus que parece nunca os ouvir direito. Cânticos, sorrisos, choros, clamores, testemunhos públicos, possessões e incorporações espirituais tomam os corpos pretos e crespos, profundamente marcados pelo sofrimento e pela dor. Minha amiga e historiadora Manuela Nascimento, pesquisadora negra das religiosidades negras no Brasil, compreende as igrejas negras como novas manifestações do cristianismo através de dinâmicas de apropriações, incorporações e decodificações culturais na experiência da colonização. Mesmo diante do fato do cristianismo ser uma religião forçadamente imposta pelos colonizadores, a reconfiguração do cristianismo católico no Brasil através do sincretismo com o Candomblé, e nos Estados Unidos através do cristianismo protestante negro é uma grande prática de resistência e sobrevivência das populações negras na diáspora atlântica, revelando o protagonismo e auto agenciamento cultural desenvolvido por nossxs Ancestrais diante toda fetichização e demonização das práticas religiosas africanas. Devemos pensar em um cristianismo negro enquanto uma instituição política que além de ser uma grande fonte estética, artística e cultural é um aparelho de resistência e sobrevivência extremamente relevante para as lutas sociais pelos direitos civis negros, como podemos evidenciar pela trajetória do grande reverendo e ativista Martin Luther King Jr. O próprio conceito de diáspora (deslocamento migratório em massa de um povo), por exemplo, foi apropriado da narrativa mitológica da escravização do povo judeu no Egito, liderado e libertado por Moisés que atravessou o mar vermelho em busca da terra prometida. As iconografias do Black Moses (Moisés Negro) enquanto símbolo de redenção e liberdade, como também as teorias da negritude de Jesus Cristo são alguns aspectos que evidenciam o caráter subversivo do cristianismo protestante negro.
Mesmo diante do terror colonial, as dinâmicas de hibridismo cultural entre as culturas dos colonizadores e colonizados puderam se desenvolver, gerando o que chamamos de matriz da música negra na diáspora africana. Inúmeros ritmos e gêneros foram inventados através dos choques e colisões culturais ocasionados pela experiência da colonização e escravização. Não há como compreender a música negra sem situá-la nesse processo histórico. As work songs (músicas que eram entoadas para determinar o ritmo do trabalho nas plantações agrícolas), os spirituals (músicas que codificavam mensagens secretas para fugas de negrxs escravizadxs ou letras políticas de liberdade), o jazz e o blues são gêneros musicais essencialmente negros que nos fazem compreender o desejo e a invenção da liberdade nos Estados Unidos, como também as dinâmicas da sublimação do terror colonial através da estética da arte, mesmo em meio a tanta dor e sofrimento. O gospel se situa nesse âmbito como um dos elementos-chave para essa compreensão: as igrejas negras se tornaram grandes laboratórios de experimentações musicais de músicxs negrxs, que revolucionaram a própria ritualística cristã inserindo o canto coral africano e a corporeidade nos cultos protestantes, aspectos histriônicos que conhecemos muito bem através dos filmes de temática negra como Mudança de Hábito. O grande cantor e pianista Ray Charles foi um dos grandes responsáveis em introduzir o gospel ao jazz, blues e soul, quebrando o paradoxo entre música negra sagrada e profana. Grandes artistas do mundo pop tiveram sua formação e iniciação musical na tradição cultural das igrejas negras e hoje o gospel também começa a ser incorporado pelo Hip Hop, como podemos perceber nos álbuns The Life Of Pablo de Kanye West, Lemonade de Beyoncé e a recém-lançada mixtape do Chance The Rapper, Coloring Book.
Mesmo em tempos pós-modernos, os fantasmas coloniais ainda nos assustam com a perpetuação do genocídio da população negra em uma sociedade que ainda nos enforcam nas árvores do esquecimento, como nos alerta o cineasta Spike Lee em seu último filme Chi-Raq, no qual o gospel ocupa um espaço privilegiado em sua trilha sonora. O gospel no Hip Hop, além de causar um novo impacto estético, vem denunciar nossa negligência em relação às nossas raízes ancestrais sagradas e nos convida a alimentar a fé que temos em encontrarmos a nossa terra prometida na qual a liberdade brilha como o sol. Devemos ter fé para que não possamos enlouquecer. Isso é uma emergência.
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.