DMX nos deixou um catálogo gigantesco de sucessos. Sua música sempre foi agressiva e com os temas tratados mais obscuros. Em muitos sons, o rapper abordava a “escuridão” em sua vida e momentos tristes que passou antes de se tornar um artista de sucesso. Demônios internos eram frequentemente ilustrados e desta forma sua persona foi ganhando corpo para nós fãs.
Como fã do rapper, estudar seus discos sempre foi algo comum e quando iniciei essas análises profundas nos projetos uma música me chamou a atenção: “Damien” do disco de estreia “It’s Dark and Hell Is Hot” de 1998. Eu nem havia ouvido a música ou lido sua letra mas já havia sacado uma referência logo no título.
“Damien” é uma referência ao personagem “Damien Thorn“, do filme de terror TheOmen (AProfecia, 1976) No filme, o personagem é o filho do demônio e o anticristo daquele universo, criado como uma simples criança que vai se conhecendo e entendendo sua realidade. Em inglês a pronuncia do nome soa semelhante a “demon”, mas não existe nenhuma relação. Porém, o significado do nome é “aquele que subjuga”.
Quando percebi essa referência, logo saquei: teríamos algo muito obscuro. E eu estava certo. A faixa é uma conversa rimada por DMX entre ele e um personagem chamado Damien, com quem ele faz um pacto para ganhar fortuna e fama em troca de atos de violência. Durante a faixa, entendemos que Damien na verdade trata-se do Demônio disfarçado tentando ludibriar X a cometer atos com os quais ele não concorda.
“Damien” é parte de uma trilogia, sequenciada no disco “Flesh of My Flesh, Blood of My Blood” também de 1998 com a música “The Omen” e finalizada em 2001 no disco “The Great Depression”.
DAMIEN (1998)
A música se inicia com DMX fazendo uma pergunta: “por que cada ação que eu faço se torna ruim? Cadê meu anjo da guarda? Preciso de um, queria ter um…” após isso, Damien entra em cena, “interpretado” DMX em uma voz um pouco mais cabulosa.
Damien se apresenta e mostra o quê ele pode conseguir para DMX, mostrando uma espécie de empatia e promessas para com o rapper:
“Meu nome é D como você, mas meus amigos me chamam de Damien / E eu vou colocar você em algo nesse jogo que estamos / Eu e você poderemos chegar lá, e você vai ser o mano mais quente que já viveu“
DMX parecia estar em uma situação muito ruim na época. Algo muito semelhante sua carreira, que “demorou” para deslanchar. Em 1998, data do seu primeiro disco, ele já tinha 28 anos e quase dez anos de carreira. Apesar do seu sucesso nas ruas, é como se X usasse seu background para tornar a música ainda mais real. Dessa forma, Damien consegue enganar o personagem principal e fazê-lo ficar animado com o caso.
Em ligação para seu filho na música, DMX fala:
“Bem, parece que seu pai vai finalmente fazer acontecer / Estou prestes a conseguir / Hoje conheci esse mano, seu nome é Damien / Ele acredita que pensamos parecido e quer ser meu amigo,” rima o rapper que depois faz uma piada com a amizade de Damien ser parecida com a de Chucky, do filme Child’s Play (Brinquedo Assassino, 1988).
O segundo verso é outro bastante intenso, pois a relação entre DMX e Damien acaba ficando cada vez mais próxima. X começa o verso em um papo com o tinhoso falando sobre ter matado alguém devido a grana, enquanto ele questiona achando que era sobre mulheres. O rapper nega, falando que seu estilo não é esse. Então, as promessas começam a aparecer, junto a outros bens.
Damien aqui começa a agradar DMX com drogas, mulheres e carro mas fala que para isso “eles precisam continuar amigos”. Um dos momentos mais cirúrgicos do som é quando DMX se questiona “o que eu tenho a perder?” logo após isso, ouvimos o rapper, na voz de Damien, soltar um “hmmm“, como se estivesse escondendo algo.
DMX também diz que confia tanto em Damien que “daria a sua mão direita por ele”. Algo que é cobrado nas futuras músicas.
O terceiro verso começa a deterioração da relação de ambos. Nas primeiras linhas, DMX presta favores para Damien matando pessoas em seu nome e fica claro que ele não gosta disso:
“Estou pronto para relaxar, mas você continua querendo que eu mate,” disse o rapper, que é respondido diretamente por Damien com: “Olha o que fiz por você! Mano, qualé, cai na real” e assim DMX parte para mais um trabalho.
O que temos de mais diferente nessa vítima, é o fato de que ela é um amigo de DMX chamado Sean e que tinha uma relação com o rapper em 1989. Ele hesita mas é convencido por Damien em um final que fica aberto.
O rapper finaliza a faixa falando que “não vê nada além de problemas à frente“. Isso deixa a situação bastante ambígua sobre DMX ter ou não assassinado seu amigo.
No final da faixa, após mais um refrão, uma voz assustadora comunica: “Continua…”
THE OMEN (1998)
“The Omen” é parte integrante do segundo disco de DMX, também lançado em 1998, “Flesh of my Flesh, Blood of My Blood“. Desta vez não temos apenas o rapper na faixa, mas também há a participação de Marilyn Manson no refrão. A produção ficou por conta de Swizz Beatz, diferente da primeira parte que teve o toque de Dame Grease.
A faixa começa com um choro feminino e um apelo para Deus não levar seu filho. Enquanto isso, uma voz (Damien) chega aparentemente escolhendo pessoas. No fundo, ouvimos o barulho de um monitor cardíaco, deixando claro que estamos em um hospital.
DMX levou um tiro e Damien “cuida dele” enquanto ele está hospitalizado. Segundo a troca de versos, foi por causa dele que X não acabou morto, mas também é por causa de Damien que ele foi alvejado. “Toda vez que você treta com um mano, eu termino tendo que matar,” revela.
Nesse primeiro versos entendemos que DMX não quer mais nada com Damien e que ele entendeu a sua natureza. Mesmo assim, o pacto firmado pelos dois acaba o puxando de volta sempre.
No segundo verso entendemos como Damien tenta persuadir DMX de todas as maneiras possíveis. O rapper inicia esse verso falando que não quer mais nada com Damien, chegando a prometer pela sua mãe e falando que ele parece estar pior do que antes.
A persuasão começa quando Damien fala que a polícia matou o primo de DMX e que ele precisa fazer alguma coisa. Logo a mente do rapper acaba esquecendo da promessa do começo do verso e ele volta sua raiva para a vingança, a forma perfeita de deixar Damien voltar a sua vida.
“Esses filhos da puta mataram minha família, e eu quero ver sangue” rima o rapper sequenciado por Damien: “É disso que falo, não somos crianças / E eu vou usar a mesma que você matou aqueles dois caras.“
No final do verso, DMX pergunta: “O que você quer de mim?” e Damien responde: “Depois eu lhe conto…“
Começando o terceiro verso, DMX aparentemente já matou os policiais que assassinaram seu primo e esse caso está tendo grande cobertura midíatica, então ele precisa sumir da cidade. Com as malas na mão, ele tromba Damien, que pede para entrar e fumar um baseado junto a ele.
DMX, já entendendo que sua vida estava tomando rumos piores através da “amizade” com Damien, não gosta da ideia.
Damien começa questionar tudo o que fez para DMX e que o rapper pediu um favor para ele (no começo da primeira música). “Você me vendeu sua alma, quando você não disse não,” disse o personagem. Ele revela o motivo de estar com o rapper e cobra sua alma.
O final da música traz DMX apelando aos céus por ajuda e que sem essa ajuda, Damien irá ganhar.
Marilyn, que faz o refrão, também termina a música com uma sinistra trilha inspirada na música tema de Jason Vorhees em Friday the 13th (Sexta-Feira 13).
DAMIEN III (2001)
“Damien III” foi lançada em 2001 no disco “The Great Depression“. Diferente dos dois primeiros álbuns, no terceiro projeto do rapper “… And Then There Was X” em 1999, Damien não foi tema das músicas – esse caso é citado por ele na música. P Killer Trackz produz essa faixa com um instrumental que dá a sensação de uma batalha acontecendo.
O som começa rápido, sem introdução, com Damien se sentindo esquecido por DMX após o mesmo conseguir fama e fortuna através da sua música.
“Que porra é essa, você esqueceu de mim? / Você está muito bem ultimamente / Não ganhei um salve no último disco, o que rolou, você me odeia?”
Quando DMX como ele mesmo entra na música, ele está forte e decidido a dar um final em sua relação com Damien. Diferente dos outros sons, onde ele tem pensamentos confusos, aqui ele parece estar preparado para lidar com tudo.
O refrão é diferente das outras músicas – que tem o mesmo refrão feitos de maneira diferente. Aqui o refrão trata-se de DMX citando que sente a presença em todos os lugares, não importa o que ele faça. Damien cobra: “cadê o meu pedaço da torta?“
O segundo verso ainda é de Damien, ele aparece muito mais do que DMX e faz ameaças inclusive à família do rapper. Ele tenta persuadi-lo mas como citei anteriormente, X parece estar muito preparado para lidar com todas as tentações.
Damien cita tudo o que deu para DMX e tudo o que pode fazer. Em um momento do segundo verso, o rapper cita que poderia ter conseguido tudo através de sua fé em Deus. Damien faz uma piada com seu nome, o chamando de “Light Man” (Homem Iluminado), enquanto o nome do rapper é “Dark Man” (Homem Obscuro).
Durante o terceiro verso, DMX desabafa entendendo que ele sabe muito bem quem é Damien e que nada do que ele o deu vale a pena o que será tirado dele: “Minha vida será tirada de mim em breve; mano, sai de perto de mim,” rima.
No fim do terceiro verso, existe uma batalha entre DMX e Damien onde o rapper invoca Jesus para tirar o Demônio de sua vida.
“Eu vou voltar, tá ligado?” fecha a música Damien. E ele nunca voltou.
A Trilogia
Entender o quê essa trilogia significa para a música/vida de DMX é uma tarefa muito difícil e nós possivelmente nunca entenderemos o que motivou o rapper a fazê-la. Mas aqui entendemos muito bem que há um homem que luta para viver entre a luz e a escuridão.
DMX sempre usou de religiosidade em suas músicas, da mesma foram que sempre lutou contra seu vício em drogas e também outros pecados que sua vida de artista trouxe. Em todos os seus álbuns, o rapper possui interlúdios de oração. Em “Flesh of My Flesh, Blood of My Blood” a oração é incluída no começo da música “Ready to Meet Him”, faixa onde ele fala sobre religião e como ele está preparado para seu encontro com Deus.
A trilogia “Damien” também tem um papel muito importante dentro do hip-hop devido seu encontro com o horrorcore e com as referências à filmes de terror, algo extremamente comum dentro do cenário. X usa muito isso em suas músicas e podemos aqui entender como ele é fã desse tipo de material, criando basicamente um filme do gênero.
Os filmes de terror tem grande importância no material que DMX produziu durante sua carreira. No seu disco de estreia, a música “X is Coming” traz samples da música tema do personagem Freddy Krueger nos filmes da franquia A Nightmare in Elm Street (A Hora do Pesadelo). Nessa mesma música, também entendemos que os crimes que Damien fez o rapper cometer, estão espalhados por sua música, ou seja, é como se a trilogia de música fosse encarada como apenas pontos de explicação durante toda sua obra.
“X is Coming” inclusive, vem logo antes de “Damien”, servindo como um prelúdio sobre tudo o que se desenrolaria dali pra frente.
Certamente DMX foi um dos nossos grandes contadores de história. O storytelling afiado do rapper fez com que suas letras se assemelhassem muito a filmes e tudo passasse pela nossa mente enquanto ouvíamos. Ouvir “Damien”, “The Omen” e “Damien III” é entrar profundamente na alma do rapper e entender como ele foi genial.
