A cultura brasileira está num lugar muito privilegiado dentro do cenário mundial. Muitos artistas carregam consigo grandes obras. Exemplo disso é Caetano Veloso, de uma riqueza filosófica ímpar. Ainda temos Cartola, Clodo Ferreira, Chiquinha Gonzaga, Raul Seixas, para citar alguns. Indo além da música, tivemos Glauber Rocha no cinema; escritores como Castro Alves, Nelson Rodrigues e Manoel de Barros. Poderia me alongar ainda sobre pintura, escultura, folclore… Mas o que quero que seja percebido é: a arte produzida no Brasil aflora em cores vívidas e discursos múltiplos. E o Rap brasileiro tem seguido esse caminho de diversificação e vivacidade. Ora, num país como o nosso, não poderia ser diferente! Dentro dessa nova geração de MC’s, um em especial chama muita atenção. Sobre ele falaremos.
Don L é cearense, MC, atualmente radicado em São Paulo. Traz sobre si o signo do Costa a Costa e não há nada que eu possa falar desse grupo que Hermano Vianna já não tenha dito. Na carreira solo, Don L inova na forma de escrever e de cantar, sobre isto, João Daniel Guimarães também já se debruçou. Resolvi me deter, então, sobre alguns pontos do que perpassa no campo das ideias. Tomei emprestado referências diversas, espero que gostem da leitura e não se encabulem pelo tamanho do texto.
De acordo com o filósofo alemão Friedrich Nietzsche, a liberdade é conquistada quando se entendem as nuances do universo e se aprende a conviver com elas. Em sua obra Assim Falava Zaratustra, o alemão mostra, dentre outras coisas, como a liberdade se concretiza através da atividade artística, no poder que ela tem de criar novos valores; não por acaso, é a criança, no livro, o último dos três estágios de transformação do espírito. Segundo Zaratustra, personagem que protagoniza o livro, na busca por liberdade real o espírito “se transforma em camelo, e o camelo em leão, e o leão, finalmente, em criança”. Mas o que isso quer dizer? Devem se perguntar. O camelo é um animal de carga, de transporte. Na sua consciência há sempre a necessidade de condução, de apontamento da direção, de que lhe deem sentido: “Deves fazer isso!”, “Deves ir por lá!”. O camelo precisa de sacerdotes, de pastores, de padres, de escrituras, de leis.
“Quem não sabe colocar sua vontade nas coisas ainda insere nelas ao menos um sentido: isto é, crê que uma vontade já esteja nelas (princípio da ‘fé’).”*
Já o leão é o desejo ardente por liberdade, é a imposição de si mesmo, é a não obediência, é a destruição de todos os tipos de aprisionamentos, é o espírito aventureiro, destemido, é a força que esbraveja. O leão não aceita comandos, isto é insultante para seu orgulho. Diferentemente do ego – que é dado a alguém, que é falso – orgulho é a dignificação do que se é, do que surge pelo próprio ser. O leão representa o “Não!” diante de todos os mandamentos. Segundo Nietzsche, as religiões criam homens fracos, submissos, sem autonomia, pois através dela são submetidos a uma liberdade condicionada, vigiada; a religião traz consigo dogmas, verdades, códigos irrefutáveis.
Por fim, a criança! O leão é símbolo de liberdade, ele quem a conquista, mas só a criança é capaz de criar valores. A criança é o “Sim!” à vida, à existência. Ela é símbolo de pureza e sinceridade; nela reside o trabalho lúdico que há na arte: a criação de novos valores. A última transformação é o ápice do homem, é o super-homem, tal como o filósofo denomina.
“(…) um homem forte, extremamente culto, hábil em toda a vida corporal, com autodomínio, com respeito por si mesmo, que pode ter a ousadia de se permitir toda a extensão e a riqueza da naturalidade, que é forte o bastante para essa liberdade ; o homem da tolerância, não por fraqueza, mas por força, porque sabia usar em seu proveito mesmo aquilo que faria uma natureza medíocre sucumbir; o homem para o qual nada mais de proibido existe, a não ser a fraqueza, seja o seu nome vício ou virtude…”*
Nietzsche deseja que o homem supere a si mesmo e crie novos valores, valores seus; é preciso por sobre si toda a carga moral existente, todos os valores e as regras, tudo de mais pesado que exista e carregar isso para o deserto, como um camelo, e lá deixar. É preciso desertar todo o peso. Só após abandonar essa carga é que se pode buscar a liberdade com avidez. O leão é livre, é dono de si! E, após livre, o homem deve, como uma criança, criar seus próprios valores. É na criação de valores verdadeiros que se encontra a liberdade.
Vamos ao Rap!
Ao longo dos últimos anos, durante sua carreira solo, Don L nos apresenta um eu-lírico sedento por libertação, que nega toda a moral ocidental da preservação. Ao fazer isso, é impossível separá-lo das transformações anunciadas por Zaratustra. Giramundo, o último single lançado pelo rapper, começa com os seguintes versos:
“Por mais/Inevitável que pareça a cruz/Se livre disso/ Descarreguei o peso no blues/ E num é comigo/Eu marcho na estrada corrompida/ Pra terra prometida/ Onde as guerras são antigas canções/ Lições de vida”.
Tais versos podem ser interpretados como a primeira transformação do espírito, o camelo, quando o eu-lírico assume o peso que carrega e o deserta. Após narrar os caminhos trilhados ao sair de casa, Don L prossegue para finalizar a música dizendo:
“Em meu epílogo de vida/ Se a guerra me for eterna/ Que minhas cinzas envenenem os covardes em volta dela/ Os medíocres envolta dela/ Fascistas e seus hipócritas/ E eu/ Volto toda vez que recitem minhas rimas póstumas”.
“A guerra sempre foi a grande sagacidade de todos os espíritos que se ensimesmaram demais, que se tornaram profundos demais; mesmo no ferimento ainda existe poder curativo.”*
Após reconhecer o peso e largá-lo, o camelo se transforma em leão, dono de si mesmo. O remix Minha Lei fala muito sobre isso.
“Bem vindo a minha lei/ Sem jogo não tem jogo/Eu já segui muitas eu sei/ Dança a dança pela minha lei/ Baseada no respeito que em todo gueto era lei”.
Mas essa ideia é trabalhada há tempos, num trampo muito mais condensado, com um ar denso de unidade, na mixtape Caro Vapor – Vida e Veneno de Don L.
Esse trabalho é inciado com Don L anunciando seus valores sobre a vida e sobre suas realizações espirituais na transcendente faixa “Morra Bem, Viva Rápido”. Na track seguinte, Chips, o eu-lírico diz:
” Seus salmos são slogans e/ Autoajuda não é bom assim/ Autodestruição, sim/ Quanto de cada cê quer?/ (…)/ Os números são mutáveis, eu não pertenço a ninguém/ Seu mundo é questionável e eu não curto suas definições/ Definições baseadas em definições forjadas”.
Mais uma vez indo de encontro as regras, o rapper questiona a moral do melhoramento no bom estilo Tyler Durden: “Autoajuda é masturbação. Autodestruição é a resposta.”
E após falar de amor, lutas e passar por conflitos em outras 13 faixas, é que uma voz sintetizada no melhor estilo West Side, assumindo o espírito libertário, já com um pé na criação de valores novos, canta o refrão da 16º faixa, Gasolina e Fósforo:
“Grana no meu bolso, foco nos negócios/ Gelo pra desinflamar a dor no meu copo/ Muda minha vida que eu mudo meus modos/ Mas enquanto eu não posso/ Gasolina e Fósforo”
“Gasolina e Fósforo” é uma metáfora para autodestruição! Esses compostos foram usados para criar armas químicas durante as guerras do Vietnã e do Golfo. A bomba de Napalm usa gasolina e a de Fósforo Branco, como o nome sugere, usa fósforo. Esse tipo de arma é atualmente proibido em guerra.
Boa parte da mixtape possui referências ao filme Clube da Luta, mas é nessa música que tudo se torna o mais evidente. Agora, sob a luz de Nietzsche – pois Tyler, assim como o eu-lírico, se enquadram perfeitamente na transvaloração de valores- sugiro que ouçam a música enquanto leem excertos do livro e do filme dirigido por David Fincher. Vou me abster de mais explicações, pois imagino que a leitura já tenha sido deveras densa, então a abstração fica por conta de vocês.
“O primeiro clube da luta éramos apenas Tyler e eu, batendo um no outro. Antes, se eu chegasse em casa nervoso, vendo que a vida não estava de acordo com meus planos, bastava limpar o apartamento ou lustrar o carro. Um dia eu morreria sem nenhuma cicatriz e deixaria um apartamento e um carro muito bons. Muito bons mesmo, até juntar poeira ou mudar de dono. Nada é estático. Até a Mona Lisa está se desintegrando. Desde que o clube da luta começou, tenho metade dos dentes moles na boca.”
“Autoaperfeiçoamento talvez não seja a solução. Tyler não conheceu o pai dele. A solução talvez seja a autodestruição.”
“Escutem aqui, vermes. Vocês não são especiais. Vocês não são um belo ou único floco de neve. Vocês são feitos da mesma matéria orgânica em decomposição como tudo no mundo.”
“Você não é seu nome. Você não é sua família. (…) Tudo o que você mais ama o rejeitará ou morrerá. Tudo o que você já criou será jogado fora. Tudo de que você mais se orgulha terminará em lixo.”**
*NIETZSCHE, Friedrich. Crepúsculo dos Ídolos. SP: L&PM Editora, 2009.
** Transcrição da falas de Narrador, Jack e de Tyler Durden, livro e filme Clube da Luta.