Sempre gostei do Michelangelo desde a época da escola quando abria o livro didático de História no capítulo de Renascimento e passava horas olhando aquelas esculturas que só faltavam falar de tão realísticas. Era um exercício meio fetichista e erótico essa contemplação do nu artístico e David sempre foi a minha preferida (e a mais conhecida pelo mundo também): aquele homem enorme que até os pentelhos eram perfeitos, HAHA. Só quando entrei na universidade que eu descobri que o Michelangelo era gay e vivia conflitos existenciais intensos em seu armário moderno, fazendo sua grandiosidade se tornar maior pra mim. A invenção do belo e do sublime no ocidente se deve muito a ele e a todos os artistas plásticos desse tempo que entronizaram a estética europeia como o ideal superior de beleza e que obsessivamente é imposto e perseguido por nós há muito tempo.
Para quem matava as aulas de História e não tá ligado, o Renascimento foi um momento muito importante para Europa após séculos sombrios de guerras e terrores religiosos que compreenderam a Era Medieval. A doutrina dogmática da Igreja Católica caracterizada pelo teocentrismo – Deus no centro de tudo – reconfigurou a visão e os modelos estéticos ideais para o corpo: o material deveria ser inferior ao espiritual, fazendo com que o corpo fosse subalternizado em relação ao espírito. Nas obras artísticas, em sua grande maioria de temática religiosa, o corpo era representado fora de suas dimensões carnais e orgânicas: a alma que deveria estar em evidência. O Renascimento transgrediu essa concepção estética ressuscitando os valores greco-romanos da antiguidade europeia, caracterizados pelo antropocentrismo – o homem no centro de tudo – no qual as dimensões estéticas do corpo humano deveriam ser hiper valorizadas.
Você deve estar se perguntando porquê essa lombra toda. Historiador é foda, fala e escreve pra caralho mesmo. Porém, a primeira coisa que devemos compreender é que os valores estéticos de belo e sublime são construções socioculturais e influenciam de maneira incisiva nossas visões e perspectivas sobre o mundo. Não é simplesmente questão de gosto pessoal como muitas e muitos dizem. O mundo ocidental do qual fazemos parte foi praticamente inventado pelos europeus e a construção do nosso imaginário coletivo em relação aos nossos corpos está diretamente relacionada aos projetos de colonização e neocolonização desenvolvidos no continente americano e africano. Historicamente os corpos foram hierarquizados pelas relações de poder, nas quais as concepções estéticas dos dominadores são superiores às dos dominados a partir de uma ideologia chamada etnocentrismo, que posicionou e classificou as culturas de maneira bastante desigual e assimétrica. Assim, europeus nos ensinaram por séculos que ser branco, liso, magro, sarado, musculoso é sinônimo de ser bonito, criando um paradigma de beleza. Tudo que está fora desse padrão é anormal, esquisito e até mesmo monstruoso. Ser belo e sublime é ser europeu, e fenômenos como a escravidão negra e o holocausto judeu foram justificados através de argumentos sórdidos como esse, a partir do qual europeus coisificaram, animalizaram e escravizaram nossas e nossos ancestrais africanos e Hitler acreditava em uma raça pura e superior que deveria dominar e exterminar as outras – a raça ariana. Nossos corpos são cirurgiados pela cultura desde que nascemos, pois devemos obedecer aos padrões estéticos que normatizam e disciplinam a vida social. Por isso a obsessão por técnicas de alisamento de cabelos crespos. Por isso a medicina plástica para ocultar os sinais anatômicos étnicos. Por isso a histeria coletiva por academias. Por isso os corpos hipertrofiados que transformam as redes sociais em espécies de açougues humanos. Como diz o grande Rodrigo Ogi, essa é a grande merda.
Certa vez navegando pelas redes sociais encontrei uma reportagem sobre uma etnia africana na qual os homens mais gordos eram os mais desejados e cobiçados pelas mulheres. Foi minha primeira referência de auto aceitação e afirmação enquanto homem gordo. Em Bodi, grupo étnico que fica localizado na Etiópia, existe um ritual no qual cada família indica um homem solteiro para participar da cerimônia do Ka’el, realizada anualmente todo mês de junho. Os homens são submetidos a uma superalimentação composta por leite e sangue de vaca, ficando isolados em uma cabana sem sexo até o dia da cerimônia, na qual é eleito o homem mais gordo da comunidade. É muito loko, cara: uma outra experiência estética de contemplação do belo! Fiquei maravilhado com isso! No mundo da cultura Hip Hop, os corpos musculosos são símbolos de virilidade e poder masculino, sendo a força e o vigor físico capitais simbólicos para a construção das masculinidades rappers: hipertrofiar o corpo é inscrever a masculinidade em si, porém existe uma diversidade de formas de invenções das masculinidades e o corpo é o principal meio no qual estas se manifestam. Nós homens gays, por exemplo, temos uma “tribo” chamada bears, composta de homens gordos e peludos que se erotizam e se envolvem afetivo-sexualmente subvertendo o padrão das bichas saradas, musculosas e depiladas que acabam estereotipando a estética gay. O que seria do rap sem Afrika Bambaataa, Notorious B.I.G., Rick Ross, DBS Gordão Chefe, Questlove, Fat Joe, Big Pun, Mobbiu, Tumi, BNegão, DJ Khaled, Timbaland, Ice Cube, dentre outros gordinhos inspiradores?
Desde então é extremamente necessário construir uma nova consciência estética sobre nossos corpos que são historicamente atacados por esse parasitismo europeu colonial. E não é um exercício fácil. Tornar-se bonita ou bonito é um desafio em meio a toda ditadura midiática da beleza que está estruturada nos valores estéticos europeus construídos em relações de força violentas e opressoras como vimos anteriormente. É só assistir às novelas da Globo ou abrir as revistas de moda e beleza. Nas revistas em quadrinhos e nos desenhos animados a maioria em peso dos heróis são brancos, atléticos e musculosos. Gordos só servem para atuar em comédias, nas quais são ridicularizados. Atualmente, há uma grande emergência de processos individuais de descolonização dos corpos principalmente quando se trata de consciência etnicorracial. Processos de transição capilar de pessoas negras que sempre alisaram seus cabelos é um bom exemplo. Assumir o fenótipo negro é perceber o corpo enquanto uma arma poderosa de enfrentamento ao racismo, que no caso do Brasil é algo muito relevante, pois vivemos em uma sociedade das aparências na qual quanto mais branco você se parece mais aceito você é. Praticamos cotidianamente um ritual de teatralização no qual interpretamos a tragédia da negação e da ilusão racial e alimentamos um auto ódio em relação aos nossos próprios corpos.
O trabalho desenvolvido pelos meninos do Comes e Raps, projeto dos rappers paulistanos Méqui Huê e TVS Beatbox, mesmo que seja encarado por muitas e muitos como uma grande piada por seu alto teor cômico e divertido, é um processo de descolonização dos corpos gordos. A primeira vez que tive contato com uma das paródias divulgadas (Balunfo, do rap Triunfo do Emicida) eu me senti muito orgulhoso: tive mais uma vez o prazer de ser gordo e assumir o belo e o sublime da configuração de meu corpo. Assumir minha felicidade em possuir a liberdade de comer o que eu quiser e bem entender, alimentando o espírito dionisíaco e exuriano que existe em mim é fazer um pacto com a liberdade. Vivemos em tempos nos quais a celebração e a satisfação dos desejos é disciplinada, controlada e vigiada através de dietas, musculações e cortes nos padrões de modelagem das roupas postas à venda no mercado. A cultura fitness além de movimentar fluxos de capital financeiro em um amplo mercado próprio no sistema capitalista camufla valores da tradição herdada através da colonização europeia, perpetuando os valores estéticos hegemônicos com o discurso dissimulado da saúde e do bem estar. A lipofobia ou a gordofobia (aversão a pessoas gordas e obesas) é um grande problema que aflige e destrói cotidianamente a autoestima de vários indivíduos e que ainda não é discutido de maneira realmente séria. O que eu e os meninos do Comes e Raps queremos não é impor uma outra estética em detrimento de outra ou defender uma cultura de degradação de si (afinal as doenças existem e comer bacon todo dia pode fuder o coração). Queremos ter o direito de ser quem nós realmente somos, assumir a grandiosidade e a fome de nossos corpos imensos em sua plenitude. Descolonizar é libertar os corpos e os desejos de suas prisões socioculturais históricas. Que o humor gorduroso e saboroso do Comes e Raps nos ajude nesse processo. Vale muito a pena conferir. A gula é nóiz!
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.