Reis negros africanos não são imagens que costumamos ver impressas nos livros didáticos de História. Nosso imaginário social coletivo secularmente colonizado por eurocentrismos está condicionado a acionar os símbolos e códigos hegemônicos de masculinidade e poder que são em sua grande maioria brancos. Memorizamos linhagens caucasianas inteiras e aprendemos desde a infância que castelos e palácios são lugares que nós negros não podemos pôr os pés, a não ser pelo acesso irrestrito às entradas do serviço abnegado. Feministas Negras por toda a diáspora escrevem exaustivamente sobre as rainhas e princesas das fábulas e contos de fadas e o quanto o regime de representação racista impacta de maneira decisiva a autoestima e a construção da psique das meninas negras. Sempre nos ensinaram através da pedagogia neocolonial que nosso passado histórico só deve ser compreendido através da exploração do trabalho escravo compulsório nos quais o terror, o ódio e o rancor em relação às nossas e nossos Ancestrais são obsessivamente estimulados. Ninguém quer se identificar com os negros amarrados nos pelourinhos, torturados sob os grilhões e açoites, asfixiados por máscaras de flandres ou com as mãos pretas estendidas sob a palmatória.
A lei federal 10.639/03 que obriga as escolas públicas e privadas brasileiras o ensino de História e cultura africana e afrobrasileira, conquista de grande relevância do Movimento Negro, provocou um grande choque nos currículos escolares e materiais didáticos, principais instrumentos de implementação dos projetos opressores de apagamento e silenciamento das histórias das civilizações africanas ou em situação de diáspora. O colonialismo europeu através do racismo institucional, diagnosticado como uma espécie de patologia coletiva problematizada em sua complexidade pelo psiquiatra Frantz Fanon através de sua obra (ainda desconhecida por muitxs), eliminou das narrativas historiográficas oficiais as trajetórias e memórias das populações africanas e negras de maneira incisiva, contaminando-as de estereótipos raciais, enfraquecendo seu potencial subversivo de luta e resistência, subjugando-as através de seus marcos temporais e heróis. Os livros didáticos de História se transformaram em espelhos turvos nos quais passamos a nos enxergar em vão.
A cultura Hip Hop me ensinou que discos, álbuns e mixtapes são também livros didáticos, como diz o Emicida. Através das narrativas dos raps é que nossas versões da História de genocídio do nosso povo são divulgadas e propagadas. Rappers são espécies de historiadores, sem academicismos e cientificismos, imortalizando nossas memórias sociais de maneira crua, realística, pulsante. Nossas histórias de lutas e glórias nunca estarão estampadas nas manchetes de jornais, e sim encharcadas cotidianamente de sangue de corpos negros abjetos eliminados pela necropolítica estatal, negligenciados pelo epistemicídio das universidades. Utilizando um conceito da Nova Historiografia, rappers produzem uma História vista de baixo, rasurando as narrativas ditas oficiais através de discursos terroristas que implodem gradativamente os eurocentrismos, transformando a marginalidade e a subalternidade em lugares privilegiados de enunciação. Se a história é nossa, deixa que a gente escreve, como propõe o Renan Inquérito. Em tempos de crises crônicas das políticas de representação, ocupação dos espaços de poder e auto-agenciamentos, o chamado “rap de mensagem”, “rap político” ou “rap verdade” se torna uma urgência para nós negrxs, perdidos na selva branca de incertezas e falta de esperança.
Diante desse contexto, Ricardo Nabil se levanta e se impõe como um rei, como todos os Shakas Zulus, Xangôs, Zumbis e seus reinos invisibilizados. A sua obra fonográfica pode ser caracterizada por um work in progress, composta por uma produção fonográfica de beats com sonoridades impactantes, além de letras complexas e sofisticadas, sem rimas artificiais e liricismos demasiadamente técnicos, timbre inigualável, além de um compromisso bastante significativo com a memória ancestral negra e suas respectivas tradições. Produzindo discursos que atravessam os ouvidos como flechas e dilaceram a alma como agadás, Nabil está armado e ameaça o Brasil racista, utilizando a música enquanto estratégia de guerra na luta em prol da transfiguração social. Nabil construiu sua notoriedade a partir do ano de 2015 através do canal Rap Box, uma das plataformas de grande relevância para o Rap Nacional principalmente para a cena underground. A força de seu rap é engendrada através de seu potencial político e ativista sem precisar ser maçante e mórbido, alimentada constantemente por uma consciência racial inabalável. Corre em nossas veias o sangue de reis, príncipes e imperadores negros africanos, derramados nos eitos e senzalas de territórios atlânticos. Nossa história é o que coroa nós homens negros enquanto monarcas de nossas histórias e destinos. É através do rap que Ricardo Nabil sobe ao seu trono e toma posse daquilo que sempre foi nosso por direito. Abram caminho para o rei.
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.