Em A Written Testimony, Jay Electronica mostra a evolução pessoal que transcende sua lírica e personalidade mística
Exatos 125 meses. Esse foi o tempo de espera pelo álbum de estreia de Timothy Elpadaro Thedford, mais conhecido como Jay Electronica. Desde o lançamento de “Exhibit C” em outubro de 2009 e a assinatura com a gravadora Roc Nation em 2010, fãs do rapper de Nova Orleans tem pacientemente aguardado e criado expectativas acerca de um trabalho, que até o dia 13 de março de 2020 se mantinha um mistério para todos.
No ano passado, o colunista Marco Aurélio escreveu aqui no Raplogia sobre os dez anos de Exhibit C e sua jornada rumo à iluminação, desvendando o seu processo criativo e a forma como construiu com os anos uma figura mítica, lendária, destinada a lançar clássico atrás de clássico.
Não se sabe o porquê de tanta espera e o porquê de transformar essa trajetória em música, muito menos se ele esperava uma evolução pessoal que transcendesse em sua lírica de forma tão potente. O que se faz notável, de fato, é que Jay Elec levou o tempo que precisava para criar A Written Testimony (2020).
Durante todo álbum encontram-se pistas da busca de um “cosmos”, um ambiente composto por inúmeras referências culturalmente distintas, mas que se acrescentam e cumprem um mesmo papel de argumentadoras e enunciativas.
A crença de Jay Electronica não se resume ao islamismo, mesmo que em lançamentos como A Written Testimony exista uma auto afirmação dos saberes e ensinamentos da Nação do Islã. Jay consegue referenciar sutilmente inúmeras figuras místicas em busca de uma “realidade alternativa”, o saber não convencional, seu caminho em busca de uma verdade.
O uso de palavras árabes durante todo o álbum é por si só uma amostra da versatilidade de Jay Electronica. Na cultura hip hop o islã é constantemente evocado, quase sempre da mesma forma e em um mesmo contexto. Palavras que exaltam ganhos, agradecimentos a Allah e até interjeições linguísticas utilizadas de forma estilística. Porém, em seu novo projeto, Jay Electronica foge dessa fórmula e apresenta novas palavras em um contexto unicamente construído por ele. Um exemplo disso é “Flux Capacitor”, oitava faixa do álbum, onde a invocação do próprio Allah é ressignificada e a presença da mãe é chamada em uma aclamação a Nação do Islã. Essa é a tão almejada busca por um novo caminho espiritual voltado a evolução.
A presença de Jay-Z em todo álbum, mesmo que seja para fins de marketing e de adiantamento, reforça essa energia mística presente na associação do rapper nova-iorquino aos iluminatti, a grande ordem formada exclusivamente pela elite política e intelectual que domina o mundo. No projeto, Jay-Z assume a sua antiga persona de Hov, uma alusão a abreviação de Jehovah, que significa o verdadeiro Deus, criador de todas as coisas, o supremo. Essas associações e menções a Annunakis, escritas mesopotâmicas e até extraterrestres como criadores dos humanos contrariam um pensamento cristão e evidenciam as “realidades alternativas” a partir de uma perspectiva ampliada e bem construída.
A energia de Jay Electronica combinada a de Jay-Z questiona um senso comum, uma crença dominante. É uma forma dos rappers comporem uma lírica que aponta a problemática da predominância cristã e judaica na sociedade. Essa argumentação é embasada por referências distintas que se complementam. Em “The Blinding”, terceira faixa do álbum, Jay-Z convoca explicitamente a bruxa suprema da música, Kate Bush. Os versos citando a artista britânica, mesmo que sejam sobre drogas, dizem muito sobre a persona artística dela, que ficou conhecida como a “bruxa obscura” por rejeitar conceitos datados e ser uma mulher a frente de seu tempo. A estratégia de manter o mesmo universo contextual onde as alusões se sobrepõem quase que naturalmente, é um traço da lírica de Hov, que nesse álbum soa ainda mais sagaz, desafiador e defensor de seu legado.
Ainda pensando nos versos, é impossível não citar a faixa nove, “Ezekiel’s Wheel”, que faz alusão ao livro O Alquimista (1988) do escritor brasileiro Paulo Coelho. A obra se tornou um best-seller pelas dezenas de questionamentos sobre o todo e a busca constante pela evolução de um protagonista que sentiu necessidade de desaparecer por um tempo. Muito parecido com o contexto criado por Electronica, que segurou esse projeto por 11 anos.
Vale mencionar que tal atmosfera é estruturada por instrumentais bem coesos, que podem soar esteticamente convencionais, mas indiscutivelmente bem formados e finalizados. A união de Jay Electronica com Swizz Beats e Hit-Boy, resultou em “The Blinding”, colocando três produtores diferentes numa mesma faixa que destaca a assinatura de cada um. A música ainda conta com Travis Scott, propositalmente soando como Kanye West em “Heartless”, em dois versos hipnóticos.
Em “Ghost of Soulja Slim”, segunda faixa de A Written Testimony, Hov imita o flow de Souja Slim ou Magnolia Slim, rapper de Nova Orleans da mesma área de Jay Electronica. Uma homenagem ao artista, que faleceu em 2003. Em “Flux Capacitor”, Hov volta ao sul dos Estados Unidos, interpolando a faixa “Get the Gat” do também rapper de Nova Orleans Big Elt, enquanto um sample da música “Higher” da Rihanna ecoa ao fundo da música.
Entre interpolações e referências, a que mais chama atenção é a de “Black Soul Brothers” do brasileiro Miguel de Deus em “The Blinding”, mantendo a cultura de produtores gringos que gostam de garimpar samples em terras brazucas. Jay tenta manter essa postura de alguém que fala o mesmo para todos, cantando em quatro línguas diferentes sobre a perspectiva espiritual e religiosa em “The Blinding” (Inglês, Yorubá e Árabe) e “Fruits of the Spirit” (Espanhol). “A.P.I.D.T.A” fecha o álbum com uma aura melancólica, sampleando instrumentais de “Hymn” da banda Khruangbin, em versos que refletem sobre a perda de pessoas queridas e próximas. A faixa foi feita no dia da morte de Kobe Bryant e sua filha Gianna Bryant.
Nesse álbum colaborativ com Hov, Jay Electronica soube se impor como autor, tanto em linha quanto em produção. Mas a harmonia entre os dois é o que chama atenção, por expor uma parceria que não exclui características genuínas e individuais de ambos os artistas. Jay Electronica constrói o projeto com classe nos instrumentais e flerta com um estilo “hoviano” na maioria das faixas, assim como JAY Z, que se aproxima de um lado sulista quase nunca visto. É fantástico observar essa peregrinação consumada de forma colaborativa, já que em poucos momentos ela é comandada por um só.
Entretanto, é preciso aceitar que durante esses 11 anos, os fãs de Jay hyparam esse lançamento muito mais que o próprio Jay Electronica, com suposições e teorias acerca do tão aguardado álbum. Essa escolha de se preservar durante um grande período de tempo para se firmar um propósito era vista como um grande mistério para o público sedento. A Written Testimony transparece todas as respostas que os ouvintes queriam e precisavam. Além de servir de guia para um pensamento renovado de um público novo, refresca as de quem já conhecia e acompanhava, trazendo mais força e importância para essa saga, que com certeza não será finalizada em 2020.