“Clin D’oeil”, do trio Jazz Liberatorz, é mais uma das grandes criações da França. O país, grande protagonista na história da humanidade, deu origem a coisas maravilhosas como o futebol de Zidane (apesar do mesmo ser Argelino), a Comuna de Paris, os famosos Antifas Franceses, muita arte e Rap.
10 anos atrás o trio lançava um disco que, de tão lindo e emblemático, pode ser considerado um clássico no circuito underground da cena Hip-Hop.
Formado em 1999 pelos DJ’s Damage, DJ Dusty e DJ Madhi, todos nascidos na região de Meaux, na França, Jazz Liberatorz é um grupo de Hip-Hop com os dois pés dentro do universo encantador do Jazz. O que os tornam únicos é a forma como as duas vertentes da música negra se complementam e integram em suas produções. Existem vários outros trabalhos magníficos com a mesma abordagem como “Jazz Matazz” disco do Guru, falecido MC do lendário Gang Star, “Everything’s Beautiful”, homenagem de Robert Glasper ao saudoso Miles Davis, entre outros grandes trabalhos. Mas, os discos lançados do Jazz Lib, são mágicos pela atmosfera hipnotizante, pelos MCs que participaram dos discos e pela produção impecável, ora submersa dentro do boom bap clássico, ora pelos sons da bateria quebrada, contrabaixo e do saxofone viciante dos 3 produtores do grupo.
Falando sobre MC’s lendários, temos Mos Def, Declaime (MC da gravadora Stones Throw), Aloe Blacc e WildChild (Do trio Lootpack, grupo do nosso Deus-vivo, Madlib). Algumas dessas participações ocorreram em outros trabalhos, como “Fruit of the past” e EP’s/Singles produzidos pelo grupo. A abordagem será do primeiro disco, “Clin D’oeil”, mas é importante frisar como vários MCs importantes para a cena passearam pelas batidas elegantes do trio francês.
“Clin D’oeil” – ou “Piscadela” para os mais íntimos, foi lançado em Janeiro de 2008 pelo selo parisiense Kit Recordings. Foi o primeiro disco do grupo, que já tinha alguns singles lançados na rua, e sua grande obra, responsável por trazer de volta o casamento entre o Jazz e o Hip-Hop dos anos 90, que explodiu nos Estados Unidos.
Com participações de peso de gente como Fatlip e SlimKid3 (The Pharcyde), Tableek (da crew maspyke) e Raashan Ahmad, que é figura conhecida no underground californiano. Clin d’oeil foi um segundo passo para o grupo, sendo que o trio de Meaux já tinha alguns sons na rua, mas ainda sem muita expectativa da cena, conforme afirmou DJ Madhi em entrevista na época. O que começou a animar o grupo para lançar esse primeiro álbum foram as participações de gente como Declaime e Wildchild, com a ajuda de amigos da cena francesa. Os caras foram lançando alguns trampos (um por ano basicamente), porém com certa demora, já que na época o grupo não era a fonte de renda principal deles.
Desses trabalhos anteriores, certamente o que teve mais destaque foi “What’s real” – regravada no Fruit of the past, 2009, com Aloe Blacc e com um sample incrível do Gil Scott-Heron, grande músico e poeta dos anos 70. Nessa fase do grupo, o trio já estava criando a linha que seria seguida no disco, inclusive alguns instrumentais utilizados no Clin D’Oeil são dessa época.
“Clin D’oeil” em si não foi projetado para ser tocado em pista e eles sabiam disso. Para um grupo que ainda estava correndo atrás de espaço, seria um tiro no pé ter essa abordagem não comercial, mas “Clin D’Oeil” acabou se tornando um “estopim” para uma cena que iria ressurgir com força na França. Essa mescla entre o jazz e o hip-hop tornou o grupo peça fundamental na cena do país, já que eles estavam correndo por fora e trazendo algo legítimo para uma renovação necessária no cenário francês.
Fato até curioso, apesar de os três produtores estarem muito ativos na cena, inclusive, foi assim que o grupo surgiu, mas até então eles não tinham participações de Mc’s francófonos. O grupo alega que, pela facilidade que as coisas se encaixavam, e devido a toda essa herança não só do jazz americano, mas como do hiphop também, acabou sendo mais natural para eles terem essa aptidão à artistas americanos, fora todo o profissionalismo dessa galera envolvida nas músicas.
Unindo o melhor do RAP e do Jazz, o disco traz produções que flertam entre a fase chamada “Era de Ouro do Hip-Hop” e outros instrumentais bem conhecidos dos amantes do Jazz. Prova disso é a faixa que dá nome ao disco, que utiliza o sample de “We’Ve Got Jazz” do A Tribe Called Quest. “Nós temos jazz” é o começo de quem sabe do assunto, e o disco fala por si só.
“Easy my mind” é a segunda faixa do disco, cantada por Omni, Slim Kid e Fatlip. O sample é do grande Ahmad Jamal, pianista de jazz favorito de Miles Davis, que tem uma longa discografia e que teve outra faixa sampleada neste disco, na música “Take a Time”. Ahmad pode não ser tão conhecido dos amantes atuais do RAP, mas com certeza já tocou muito nos fones da maioria deles, com a faixa “Swahilidand“, que virou a amostra de uma das faixas mais conhecida do grupo De La Soul.
Hubert Laws e sua flauta elogiada no meio da Música clássica e do Jazz dão o tom na faixa “I’m Hip-Hop”, na minha opinião uma das mais belas do disco, ela letra que exalta o amor pela cultura e pela execução belíssima do MC Asheru, que já trabalhou com gente como: Common, Mos Def, Jill Scott, Bilal, Ludacris, Edo G, J-Live, Wordsworth, The Roots, Pete Rock e DJ Jazzy Jeff. O peso da voz do cara é enorme!
Gosto dessa produção pelo fato dela ter sido criada totalmente baseada na faixa “Tryin’ to Get the Feeling Again” usando 3 amostras do som e criando uma atmosfera extremamente lírica.
“When the Clock Ticks” é a grande primeira aparição do disco. J Sands, MC da Pensilvânia, que fez parte do grupo “Lone Catalysts” e que também colaborou com J Dilla em alguns singles é quem rouba a cena. Essa faixa trás uma das caracteristicas mais marcantes do Jazz, que são os solos de piano. Piano esse que, de tão marcante e belo, faz os bumbos e caixas serem meros coadjuvantes. O flow do MC é muito marcado, coisa de quem vem do berço do RAP e isso tudo torna a faixa tão foda.
O disco vai tomando forma e, o que vem é só pedrada. “Indonesia” é um grande climax melódico e é onde o RAP e o Jazz fazem o casamento definitivo. A faixa trás uma melodia maravilhosa e melancólica, com 3 amostras diferentes. O vocal feminino é da faixa “Love From the Sun” do compositor e baterista de jazz Norman Connors, lançada em 1973. Temos ainda uma amostra de “Dance to the Music” da banda de Rock e Funky Sly & the Family Stone’s. Para finalizar, os vocais que compõem o fim da faixa são da clássica “Hit the road, Jack” da lenda Ray Charles, um dos maiores pianistas de Soul e Jazz que o mundo já viu.
A faixa trás versos bastante interessantes, incluindo o ótimo refrão, como “I’m penning the blues, to cure the blues”, “I’m the MC Tableek, science in the rap/ Liberating Jazz Liberatorz on the track” e “Trying to not be forgotten is an aimless cause/All in the sand box, but my shovel’s much bigger than yours”, do MC Tableek. Apani B. Fly, MC do Queens, finaliza uma das melhores faixas do disco com um salve para suas inspirações no RAP:“Yeah, you know. Music’s just my thing. Too many artists to name where I got my inspiration from, you know, but I like it all, from hip-hop to rock to country, a little bit of everything influenced me. We’ll keep under the hip-hop right now. MC Lyte, course, you know. Hit the road, saying, don’t you come back no more, no more, ..” .
“Indonesia” dá a sensação de ter sido extraída dos registros mais profundos do verdadeiro Hip-Hop underground.
Ainda falando de Apani B Fly, a cereja do bolo da grande MC é a faixa intitulada “The Process”, que é realmente o grande registro com cara de RAP dos velhos tempos. Novamente temos o talento de Ahmad Jamal no disco, com a amostra de “Pastures” faixa lançada em 1974 composta por um piano profundo e pesado. “Its not a random thing, Apani brand the swing, No manufactured bling” e muitas outras ótimas linhas da MC mostram porque ela faz parte do projeto como uma das grandes vozes do RAP. Levada de gente grande e muito bem construída, o beat é extremamente bem feito e soa como a riqueza que o RAP de Nova Iorque sempre fez jus.
Mais uma vez o trio mostra toda sua influência do universo do RAP, na faixa “U do”, cantada pela MC Stacy Epps, de uma voz maravilhosa. Tanto a bateria, algumas amostras e o refrão foram sampleados da faixa “Things U do” do lendário grupo de Detroit Slum Village, com produção de J Dilla, que ainda fazia parte do grupo. Aliás, o Slum Village é uma das grandes referências quando se trata de RAP Jazz e, pra quem não conhece (Porra!), os dois volumes do disco “Fantastic” são as grandes obras do grupo, ambos produzidos por James Yancey.
“U do” é o grande som de amor do disco, quase um R&B com uma bateria bem marcada de RAP e o vocal da MC que é a grande estrela da faixa. Stacy fez parte dos grupos Rakotep e Sol Uprising, ambos dos EUA e trás consigo uma grande caminhada na cena.
Raashan Ahmad é outro grande MC da cena underground que dá o ar da graça – com maestria, no disco. Integrante do grupo Clown City Rockers, da Califórnia – Terra de Madlib, MED, Oh No e Ab-Soul, e trás consigo a bagagem do grupo que já foi comparado a The Roots, A Tribe Called Quest e De La Soul. Aliás, uma das semelhanças com o The Roots vem do fato das apresentações ao vivo com bateria.
O MC rima em cima da faixa “Cool Down” do seleto time das melhores faixas do disco, que não tem uma faixa ruim. O sample ficou por conta de ninguém menos que Marvin Gaye, um dos artistas mais aclamados da música negra mundial. A faixa “Trouble man” foi lançada por Marvin em 1972 e é carregada de soul, blues, R&B e a voz inconfundível do artista.
“Cool Down” é das grandes faixas do disco tanto pela melodia carregada da alma do jazz, e com rimas muito boas de Raashan falando sobre os dons do MC, a tranquilidade que se deve levar a vida e muitas outras mensagens positivas que só alguém com a voz de Ahmad pode fazer com primazia.
“Speak the language” foge de todo e qualquer contexto que o disco tenha se inserido. É jazz, puro e simplesmente jazz, das faixas que você precisa sentir. Não tem muita explicação para o groove da penúltima faixa do disco além da percepção individual de cada ouvinte. A amostra utilizada nessa faixa foi “Quasar”, do instrumentista de jazz Bennie Maupin, nascido em Detroit. Foram utilizadas a intro da música e o miolo dela, o que fica evidente ouvindo ambas as faixas. Assim como “Rhinestone Cowboy” finaliza “Madvillainy” com maestria, “Speal the language” mostra ao mundo o que é Jazz Liberatorz e o que significa essa libertação.
Passados 10 anos deste lançamento, entre outros disco do grupo e singles, existe um hiato de lançamento que, segundo entrevistas de DJ Damage, pode ser quebrado em breve. Apesar disso, o mesmo segue levando a música de Jazz Liberatorz e da era de ouro do Hip-Hop pelo mundo, com diversas apresentações pela França e outras localidades. Além disso, o DJ segue também como MrBop, discotecando e, mais do que isso, fazendo música como ns velhos tempos.
Independente da falta de interesse da cena para com o disco, visto que, não se tem noticia de muitas entrevistas e resenhas acerca do trabalho, “Clin D’oeil”, quando analisado pela construção e qualidade do trabalho, pode ser considerado como uma das grandes obras da cena underground do Hip-Hop, e ficará marcado pra sempre na história do Rap Jazz, que, como já disse Robert Glasper, “Jazz is a mother or father of Hip=Hop”.
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