Foto por Marco Aurélio (@marrcolaa)

Para quem ainda não conhece o Matéria Prima, “Katucha” é uma boa forma de conhece-lo. O MC mineiro que fez parte dos grupos Quinto Andar, Subsolo, e é vocalista da banda Zimun, tem vivido uma nova fase, buscando conquistar mais espaço a partir de sua carreira solo.

Nesta nova faixa, Matéria faz algumas reflexões introspectivas sobre seu próprio trabalho e cotidiano. O refrão é um dos trechos marcantes que mostra o provável motivo por tantos fãs de rap não conhecerem seu trabalho. Quando ele fala “Eu só quero tirar a tensão”, é tanto para que seus ouvintes usem sua música como um alívio para suas correrias diárias, quanto para o próprio MC, que utiliza esse processo de construção como algo terapêutico.

De certa forma, essa ideia também está presente na arte produzida por Oberon Blenner (@_oberas) para a faixa. Nela temos um menino no topo de uma casa observando a cidade a noite. A ideia partiu da música enviada para o ilustrador, de acordo com o MC.

A arte da capa aconteceu em decorrência de ter feito uma faixa com Mateus Coringa, chamada “Observações de Um Mundo Raso”. Coringa estava preparando uma animação de um lyric vídeo do Oberas, então me enviou uma prévia e eu curti, então logo pensei em trabalhar com Oberon. A partir deste contato, mandei a prévia da música e ele começou a fazer a ilustração de acordo com o que ele sentiu da música. Fomos conferindo os detalhes da paleta de cores e se o desenho do horizonte solitário representava a sentimento da música, porque ela é bem introspectiva.

Este registro da arte descreve aquele momento ideal no qual pensamos nas questões que a vida nos traz. É a imagem perfeita para o início do verso rimado pelo Matéria Prima.

Eu sou mais quetin
Sem fazer marketing
Quero um lugar quentin
Pra abrigar quem vim
Fugir desse mundo frio enfim

É interessante notar como o mineiro apresenta uma percepção paradoxal sobre o rap. Na sequência da faixa temos um MC que se mostra apaixonado pela arte que produz e pela cultura que permeia.

Procuro algo no ritmo
Fora do algoritmo
Que agora é íntimo
De todo mundo que tem um celularzin
Queria ser BBoy e voltar no tempo, dando um backspin

Enquanto, no refrão, ele mostra uma realidade que muitos ouvintes sequer imaginam, mostrando que viver de música não significa ter as contas pagas – “Sou filho do rap/Que não paga pensão”. Mesmo na era digital, com os views e streamings, com o acesso na ponta dos dedos, o mercado da música online é um problema que tem nessa nova forma de consumir música um desafio para encontrar um modelo que agrade todas as partes.

Essa forma de escrita do MC – exaltando o lado positivo das coisas ou fornecendo uma perspectiva mais acolhedora da realidade – é uma de suas características que ele descreve em entrevista para Original Pinheiros Style (OPS), após o lançamento de seu último disco, “Rascunhos de Um Momento Conturbado” (2019), em parceria com DJ Lotek:

Eu acredito que já tem muita gente que faz esse papel de lembrar o quanto tá difícil. Eu acho que, pra muitos, a realidade já grita ao sair de casa. Já se convive muito com a dureza da vida no dia a dia. Eu tento contribuir pro hip hop com um olhar menos pesado, mesmo que seja sobre a mesma realidade. Dizem que arte de verdade tem que ser incômoda, mas também acho que ela tem que aliviar o tranco.

Neste momento da faixa, Matéria Prima conquista os ouvintes descrevendo um ritual conhecido por muitos. E no meio das contradições que vinha relatando, seu ar pensativo mostra uma junção de referências pessoais carregadas de significados profundos.

O paralelo entre uma capa do disco do Gerson King Combo e o famoso discurso “I Have A Dream” de Martin Luther King traz uma das discussões com relação ao próprio rap: fazer música para diversão ou como um protesto? Sem esforço nas rimas, o MC coloca de maneira implícita seus pensamentos na mente de quem acompanha a faixa.

Mas tudo que eu tenho é um beckzin
Pra poder fumar a noite sozin
No meu quilombo
Na cama tombo
E no sonho trombo
Gerson King Combo
E ele passa a capa pra mim
Versão chapada de I Have a Dream

Toda essa atmosfera conquistada na música não vem apenas pela letra da música: O Adotado, vulgo niLL da SoundFood, entrega uma produção perfeita para o clima da música. O lo-fi que preenche a faixa gera uma imersão típica das trilhas sonoras de jogos ou cinema, bem naquela cena que o personagem reflete sobre os acontecimentos da história que antecedem o clímax.

Essa calmaria estabelecida pela faixa é propícia para uma finalização nostálgica. O rapper relembra seus tempos de skatista e suas memórias junto ao Kamau, outro MC extremamente respeitado na cena nacional e que compartilha a paixão pelo skate além da música. No fim das contas, Matéria Prima continua o mesmo, com uma mentalidade jovem e disposta a experimentar coisas novas.

Andando pelas beiradas que nem um grindin
Que nem quando eu tinha o shape da Blind
Andando com Kamau no Anhangaba
Bem antes de eu conhecer o Adalba

Essa combinação entre MC e produtor se desenvolveu de forma natural, como o próprio Matéria comenta ao ser perguntado sobre O Adotado:

Trabalhar com niLL é incrível. É um cara que desde que nos conhecemos, o santo já bateu. O TETRIZ tem uma música com ele que se chama “Quatro Pilares”, que participa também o Espião do Rua de Baixo. Nos encontramos em uma ocasião em São Paulo, em que fui fazer um show e convidei o Espião para fazer essa música. Fizemos outro som que se chama “janumsabe” do disco do Mano Will. E então começamos a conversar sobre fazermos mais uma música e nessa conversa eu perguntei se não poderíamos fazer um EP. niLL topou, mas com a condição de fazer a produção musical. Então isso nos levou ao disco que estamos produzindo.

O rapper mineiro indica que ainda esse ano devemos ver novamente a parceria com niLL, que está produzindo o seu novo disco:

Ela é o single do projeto que havia comentado que estou fazendo com o niLL, que está produzindo este trabalho. Deve sair ainda esse ano, mas prefiro não firmar uma data. Cerca de metade já está pronto, falta definir quem fará a mixagem e a masterização, algumas regravações e as participações. Está sendo incrível e divertidíssimo, um exercício de musicalidade muito interessante para mim, que tem outra mentalidade no rap, trabalhar com niLL. Inclusive, fiquei preocupado durante um tempo, por pensar que fosse passar a impressão de estar “surfando na hype”, tipo tiozão do rap querendo colar nos mais novos (risos). Mas tivemos (eu e o niLL) uma afinidade muito grande na música e na vida, conversamos com frequência sobre várias coisas.

Aproveitando a oportunidade, Matéria Prima também falou um pouco do que tem escutado:

Eu escuto muito rap gringo. Eu aprendi e aprendo a falar inglês com o rap. Eu fico viajando nas analogias e metáforas, e no quanto algumas realidades dos sons são parecidas com a nossa aqui. Mas a SounFood, por exemplo, eu acho incrível, com muito conteúdo e estética incrível. Eles levam a sério a questão de experimentar, o que é muito importante. Eles não têm medo de experimentar e fazer algo novo, querem deixar uma marca diferente. Nós que viemos dos anos 90 temos um olhar muito voltado para autenticidade e originalidade. Isso a SoundFood tem de sobra. Aqui do rap nacional, tem uma galera de Belo Horizonte que eu curto muito: Nabru, Kali, Abu, Terceiro Turno, Gurila Mangani e Delatorvi. Além deles, também tenho escutado Vandal, Febem, Parteum, Dukes Maia, Elo da Corrente, Ordem Natural, Ramiro Mart e Kainná Tawá, para citar alguns.

A faixa está disponível no Youtube e é um belo convite para explorarem a discografia do Matéria Prima, um dos compositores mais completos do rap nacional, antes do seu novo disco.

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