Foto por Marco Aurélio (@marrcolaa)
Para quem ainda não conhece o Matéria Prima, “Katucha” é uma boa forma de conhece-lo. O MC mineiro que fez parte dos grupos Quinto Andar, Subsolo, e é vocalista da banda Zimun, tem vivido uma nova fase, buscando conquistar mais espaço a partir de sua carreira solo.
Nesta nova faixa, Matéria faz algumas reflexões introspectivas sobre seu próprio trabalho e cotidiano. O refrão é um dos trechos marcantes que mostra o provável motivo por tantos fãs de rap não conhecerem seu trabalho. Quando ele fala “Eu só quero tirar a tensão”, é tanto para que seus ouvintes usem sua música como um alívio para suas correrias diárias, quanto para o próprio MC, que utiliza esse processo de construção como algo terapêutico.
De certa forma, essa ideia também está presente na arte produzida por Oberon Blenner (@_oberas) para a faixa. Nela temos um menino no topo de uma casa observando a cidade a noite. A ideia partiu da música enviada para o ilustrador, de acordo com o MC.
Este registro da arte descreve aquele momento ideal no qual pensamos nas questões que a vida nos traz. É a imagem perfeita para o início do verso rimado pelo Matéria Prima.
Eu sou mais quetin
Sem fazer marketing
Quero um lugar quentin
Pra abrigar quem vim
Fugir desse mundo frio enfim
É interessante notar como o mineiro apresenta uma percepção paradoxal sobre o rap. Na sequência da faixa temos um MC que se mostra apaixonado pela arte que produz e pela cultura que permeia.
Procuro algo no ritmo
Fora do algoritmo
Que agora é íntimo
De todo mundo que tem um celularzin
Queria ser BBoy e voltar no tempo, dando um backspin
Enquanto, no refrão, ele mostra uma realidade que muitos ouvintes sequer imaginam, mostrando que viver de música não significa ter as contas pagas – “Sou filho do rap/Que não paga pensão”. Mesmo na era digital, com os views e streamings, com o acesso na ponta dos dedos, o mercado da música online é um problema que tem nessa nova forma de consumir música um desafio para encontrar um modelo que agrade todas as partes.
Essa forma de escrita do MC – exaltando o lado positivo das coisas ou fornecendo uma perspectiva mais acolhedora da realidade – é uma de suas características que ele descreve em entrevista para Original Pinheiros Style (OPS), após o lançamento de seu último disco, “Rascunhos de Um Momento Conturbado” (2019), em parceria com DJ Lotek:
”Eu acredito que já tem muita gente que faz esse papel de lembrar o quanto tá difícil. Eu acho que, pra muitos, a realidade já grita ao sair de casa. Já se convive muito com a dureza da vida no dia a dia. Eu tento contribuir pro hip hop com um olhar menos pesado, mesmo que seja sobre a mesma realidade. Dizem que arte de verdade tem que ser incômoda, mas também acho que ela tem que aliviar o tranco.
Neste momento da faixa, Matéria Prima conquista os ouvintes descrevendo um ritual conhecido por muitos. E no meio das contradições que vinha relatando, seu ar pensativo mostra uma junção de referências pessoais carregadas de significados profundos.
O paralelo entre uma capa do disco do Gerson King Combo e o famoso discurso “I Have A Dream” de Martin Luther King traz uma das discussões com relação ao próprio rap: fazer música para diversão ou como um protesto? Sem esforço nas rimas, o MC coloca de maneira implícita seus pensamentos na mente de quem acompanha a faixa.
Mas tudo que eu tenho é um beckzin
Pra poder fumar a noite sozin
No meu quilombo
Na cama tombo
E no sonho trombo
Gerson King Combo
E ele passa a capa pra mim
Versão chapada de I Have a Dream
Toda essa atmosfera conquistada na música não vem apenas pela letra da música: O Adotado, vulgo niLL da SoundFood, entrega uma produção perfeita para o clima da música. O lo-fi que preenche a faixa gera uma imersão típica das trilhas sonoras de jogos ou cinema, bem naquela cena que o personagem reflete sobre os acontecimentos da história que antecedem o clímax.
Essa calmaria estabelecida pela faixa é propícia para uma finalização nostálgica. O rapper relembra seus tempos de skatista e suas memórias junto ao Kamau, outro MC extremamente respeitado na cena nacional e que compartilha a paixão pelo skate além da música. No fim das contas, Matéria Prima continua o mesmo, com uma mentalidade jovem e disposta a experimentar coisas novas.
Andando pelas beiradas que nem um grindin
Que nem quando eu tinha o shape da Blind
Andando com Kamau no Anhangaba
Bem antes de eu conhecer o Adalba
Essa combinação entre MC e produtor se desenvolveu de forma natural, como o próprio Matéria comenta ao ser perguntado sobre O Adotado:
”Trabalhar com niLL é incrível. É um cara que desde que nos conhecemos, o santo já bateu. O TETRIZ tem uma música com ele que se chama “Quatro Pilares”, que participa também o Espião do Rua de Baixo. Nos encontramos em uma ocasião em São Paulo, em que fui fazer um show e convidei o Espião para fazer essa música. Fizemos outro som que se chama “janumsabe” do disco do Mano Will. E então começamos a conversar sobre fazermos mais uma música e nessa conversa eu perguntei se não poderíamos fazer um EP. niLL topou, mas com a condição de fazer a produção musical. Então isso nos levou ao disco que estamos produzindo.
O rapper mineiro indica que ainda esse ano devemos ver novamente a parceria com niLL, que está produzindo o seu novo disco:
”Ela é o single do projeto que havia comentado que estou fazendo com o niLL, que está produzindo este trabalho. Deve sair ainda esse ano, mas prefiro não firmar uma data. Cerca de metade já está pronto, falta definir quem fará a mixagem e a masterização, algumas regravações e as participações. Está sendo incrível e divertidíssimo, um exercício de musicalidade muito interessante para mim, que tem outra mentalidade no rap, trabalhar com niLL. Inclusive, fiquei preocupado durante um tempo, por pensar que fosse passar a impressão de estar “surfando na hype”, tipo tiozão do rap querendo colar nos mais novos (risos). Mas tivemos (eu e o niLL) uma afinidade muito grande na música e na vida, conversamos com frequência sobre várias coisas.
Aproveitando a oportunidade, Matéria Prima também falou um pouco do que tem escutado:
”Eu escuto muito rap gringo. Eu aprendi e aprendo a falar inglês com o rap. Eu fico viajando nas analogias e metáforas, e no quanto algumas realidades dos sons são parecidas com a nossa aqui. Mas a SounFood, por exemplo, eu acho incrível, com muito conteúdo e estética incrível. Eles levam a sério a questão de experimentar, o que é muito importante. Eles não têm medo de experimentar e fazer algo novo, querem deixar uma marca diferente. Nós que viemos dos anos 90 temos um olhar muito voltado para autenticidade e originalidade. Isso a SoundFood tem de sobra. Aqui do rap nacional, tem uma galera de Belo Horizonte que eu curto muito: Nabru, Kali, Abu, Terceiro Turno, Gurila Mangani e Delatorvi. Além deles, também tenho escutado Vandal, Febem, Parteum, Dukes Maia, Elo da Corrente, Ordem Natural, Ramiro Mart e Kainná Tawá, para citar alguns.
A faixa está disponível no Youtube e é um belo convite para explorarem a discografia do Matéria Prima, um dos compositores mais completos do rap nacional, antes do seu novo disco.