Na universidade iniciei um processo quase que autoetnográfico de atravessar a ponte que me liga aos homens negros, apesar da mesma ainda nos manter muito distantes. Os marcadores socioculturais como raça, gênero, sexualidade, classe, geração, religiosidade, nacionalidade, dentre outros possíveis, são pontes que estabelecem (des)encontros em trânsitos e congestionamentos constantes entre as identidades. As tentativas de compreensão dos paradoxos entre gênero e raça me fez questionar desde a infância quais são as construções, configurações e os significados das masculinidades negras nas sociedades impactadas com o colonialismo europeu e a escravização das populações africanas, localizando-as através da história. Vários líderes políticos como Zumbi dos Palmares, Martin Luther King Jr., Malcolm X, Steve Biko, Nelson Mandela e inúmeros outros ainda não devidamente impressos nos livros encharcados de sangue da história eurocêntrica, inspiraram gerações inteiras de homens negros através de seus legados de luta e resistência. Aprendi desde criança que ser homem negro é, antes de tudo, enfrentar o desafio cotidiano de sobrevivência aos sistemas opressores que marginalizam, subalternizam e exterminam nossa própria humanidade. Em meio aos espelhos turvos pendurados nas paredes da casa dos estereótipos discriminadores, sempre tivemos a necessidade de nos enxergar um ao/no outro, e acabamos nos tornando heróis de nós mesmos. Muhammad Ali decidiu ser o herói de sua própria história e acabou personificado em um dos maiores símbolos de liberdade e redenção para negros diaspóricos no mundo inteiro.
Foi assistindo ao documentário Quando Éramos Reis que conheci Muhammad Ali pela primeira vez. O documentário é um grande registro sobre a histórica luta entre Ali e George Foreman, que disputavam o título mundial dos pesos-pesados no antigo Zaire, hoje República Democrática do Congo, em 30 de outubro de 1974. A altivez, a verborragia, a ironia, a autoestima meteórica, além de sua beleza hipnótica tornaram o exercício de descoberta do “outro” em um encontro comigo mesmo. Ali me ensinou que as estruturas socioculturais do racismo devem ser abaladas através de jogos de subversão, que acontecem principalmente nas dimensões psicológicas do homem negro. Inúmeros pugilistas na história do boxe morreram através da exploração da materialidade atlética de seus corpos robustos e musculosos, bestas grotescas em cartaz nos circos do colonialismo. O glamour do pugilismo atual, no qual ícones como Floyd Mayweather se asfixia em ostentação e rios de dinheiro, sublima todo um passado de traumas, conflitos existenciais e vícios deteriorantes de homens negros que transcodificaram sua potência física, brutalidade e virilidade em dispositivos de resistência e sobrevivência. Os lutadores mandingo presentes na história da escravidão dos Estados Unidos é um grande exemplo de como colonizadores europeus exploravam compulsoriamente a corporeidade negra masculina até para seu entretenimento sádico, transformando a morte dos combates entre homens negros em um espetáculo.
Muhammad Ali pôs fogo no circo da branquitude masculina a partir do momento que, através de sua prática ativista pelos direitos civis negros e sua conversão à Nação do Islã, percebeu o quanto a dissociação entre corpo e psique era um dos grandes sintomas da patologia do racismo no mundo do esporte. Para os homens brancos eurodescendentes éramos corpos ambulantes animalizados que deveriam ser dominados e disciplinados através do trabalho físico forçado, caso contrário nossa inerente brutalidade e agressividade instintiva deveriam servir como diversões abjetas. Se tornava então uma urgência reestabelecer simbolicamente o equilíbrio entre corpo e espírito, em uma dinâmica de reinvindicação de nossa humanidade. Posicionar-se politicamente através do discurso era uma das estratégias subversivas de Ali: como seus jabs, suas críticas e opiniões eram certeiras e fulminantes. Muhammad Ali derrubou por toda sua grandiosa carreira o racismo nos ringues do colonialismo, imbricando força física com força mental em suas luvas. Uma tradição herdada de valor inestimável que atletas negros de nossos tempos negligenciam e vendem por fascínios que o capitalismo oferece, mercantilizando seus corpos como seus ancestrais no tráfico transatlântico.
Hoje qualquer reflexão ou análise são insuficientes para compreender a dimensão da relevância da trajetória de Muhammad Ali, principalmente para nós homens negros. Ali nos mostrou que construir nossas masculinidades é inventar a nossa própria liberdade. Hoje com sua morte, me sinto mais uma vez um menino que perde seu pai que, além de ter me ensinado que sou herói de mim mesmo, me ensinou a ser rei do meu próprio destino. Todo menino negro é um rei. ALI BOMAYE! ALI BOMAYE!
Daniel Dos Santos (DanDan) é licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UNEB), mestrando em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), membro fundador e pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb) e pesquisador do Grupo de Pesquisa em Cultura e Sexualidade (CuS), nos quais desenvolve o #TheGangstaProject: Masculinidades Negras nos Videoclipes dos Rappers Jay Z e 50 Cent. É apaixonado pelo Drake e Kanye West. Os boxeadores negros são suas principais inspirações.