Os filmes de máfia e crime organizado em geral estão sempre no imaginário dos fãs de rap, afinal, é muito comum ver seu rapper favorito citar algum momento ou linha de Scarface, The Godfather, Goodfellas, Carlito’s Way, entre outros.
Você já leu aqui como Scarface influenciou uma geração de rappers – existe até um documentário sobre esse tema. A trama de Tony Montana é considerada influente entre os artistas de rap pela sua ascensão no mundo das drogas, um mundo que alguns artistas já fizeram parte. Além disso, todo o estilo flashy de Tony, com ternos de milhares de dólares, carros caros e itens exuberantes, permeia o bragadoccio do rap desde os anos noventa.
Mas uma “cara” desse mundo de Tony Montana foi muito bem pincelada de uma maneira totalmente oposta por Immortal Techinique na música “Peruvian Cocaine” de 2003. Parte integrante do disco “Revolutionary Vol. 2”, ela é uma das maiores posse cuts do rap na minha opinião.
Posse cuts: é um estilo de música no hip hop que envolve versos sucessivos de quatro ou mais rappers.
Para falar de “Peruvian Cocaine” é importante ilustrar uma cena do filme Scarface (1983), que é fundamental para o filme:
Alejandro Sosa chama Tony Montana para seu complexo em Cochabamba, onde junto de outros envolvidos, assiste a entrevista do jornalista Matos Gutierrez, que tomou conhecimento sobre as operações de Sosa e pretende testemunhar na ONU sobre o caso, o que acaba incomodando o chefão, que tem o desejo de matá-lo. A cena é peculiar por um motivo específico: junto de Sosa e Tony, existem representantes do governo boliviano e americano, criando uma conexão entre o país que exporta a droga e o que “quer tirar ela duas ruas”, mas que lucra com isso, ou seja, que facilita o trânsito da mesma pelas cidades.
Essa cena é importante para o filme e para a música. Na película, essa cena dá início a uma série de violentos atos que atingem o ápice do terceiro ato, e que mostram como um homem, por mais poderoso que ele seja, não é maior que o esquema por trás dele. E na música, ela é o quê e necessário para dar o tom para os versos.
O discurso de Matos Gutierrez na televisão é sampleado na música por Toure “Southpaw” Harris, que encaixa o recorte com maestria para ilustrar a dinâmica da música, dando o tom para “Peruvian Cocaine”, que tratará em cada verso uma perspectiva do mundo do tráfico de drogas, passando por todas as suas camadas. Immortal Technique sempre manteve seus esforços para o underground, e para essa música ele chama outros nomes da cena: Pumpkinhead, Diabolic, Tonedeff, Poison Pen, Loucipher e C-Rayz Walz.
Cada rapper é um personagem, semelhantes àqueles que estão na cena do filme de 1983, dando início então a perspectiva de cada um dos homens desse mundo.
Immortal Technique é o trabalhador que vive nas platanções de coca em condições insalubres mas precisa trabalhar para o sustento de sua família enquanto ganha centavos.
“Tô na fronteira da Bolívia, trabalhando por merreca / Tratado tipo um escravo, os campos de coca precisam estar prontos”.
Pumpkinhead é um personagem poderoso, que tem contatos com a lei e que gera medo aos trabalhadores. O verso do rapper mostra como vidas são descartáveis dentro desse violento cenário.
“Ok, ouça, Juan Valdez, apenas me traga meu produto / Antes de cortarmos suas mãos por má conduta dos trabalhadores.”
Diabolic é o líder de estado corrupto e que faz vista grossa sobre esse cenário pois está também envolvido com tudo. O rapper cita que o seu personagem fez um golpe de estado para toma ro poder e tem a assistência da CIA. Podemos remeter esse personagem ao boliviano Luis García Meza Tejada, que tomou poder na Bolívia por um sangrento golpe de estado, e sempre foi ligado aos cartéis de cocaína do país.
“Nascido e criado para consultar os federais, eu rio do destino / E assassinar meu antecessor para ter seu lugar / Num’ estado fascista do Terceiro Mundo, bloqueie a nação / Com 90% das riquezas, para 10% da população.”
Tonedeff é o agente corrupto da CIA, que facilita o fluxo de drogas nos Estados Unidos e lucra com isso.
“Querida, cheguei / Não liga para nossa conta bancária crescendo do nada / É engraçado como nós saímos daquelas dívidas que tínhamos / Você sumiria se eu dissesse que tenho dois governos derrubados?”
Poison Pen traz as ruas para a música. Ele é o traficante que distribui as drogas nas ruas dos Estados Unidos. Ele comenta sobre transformar a droga em crack, o que tecnicamente deixa ela mais barata para o usuário e também rende mais.
“Meus manos não atiram se eu não mando – Cê tá com a grana? Me dá a parada! – tipo o Ice Cube, então não brinca com minha coca.”
LouCipher foca no controle exercido pelas autoridades e toda a vigilância que os traficantes possuem das autoridades ao exibir seu estilo de vida luxuoso.
“Tirando fotos e grampeando telefones / Falando com informantes e quebrando códigos / Ágil para prender ou atirar com a .44 em qualquer malandro guardando grana.”
C-Rayz Walz fala sobre as consequencias e a queda das pessoas envolvidas com o tráfico de drogas e como tudo é muito maior do que apenas aquele traficante nas ruas fazendo dinheiro, é algo que vai até grandes empresas e políticos.
“Comandamos quebradas, elas trancam países e possuem empresas / Nós temos bons carros e dinheiros para tênis.”
Os versos terminam, mas “Peruvian Cocaine” ainda usa sample de outro filme gângster muito conhecido, principalmente entre os fãs de rap: New Jack City, com Ice-T e Wesley Snipes.
Nino Brown, personagem de Snipes, tem um discurso em seu julgamento que encaixado aqui, explica todo o conceito da música:
“Eu não sou culpado. Vocês que são os culpados. Os criadores das leis, os políticos, os chefes de droga colombianos… todos vocês que fazem lobby para tornar as drogas legais, igual como vocês fizeram com o alcóol na proibição. Vocês quem são os culpados. Quer dizer, vamos fazer as contas: não existem UZIs feitas no Harlem! Nenhum de nós possui um campo de opióides. Isso é maior que Nino Brown. É um grande negócio. O jeito americano.”
Esse discurso entra em contexto com toda a música pois explora a complexidade desse assunto, um tema que precisa ser sempre debatido com muito cuidado e entendimento. É interessante analisar o conceito de “Peruvian Cocaine” de forma artística também, pois o encaixe do recorte do filme Scarface traz o tom necessário para que a música se desenrole. O storytelling aqui é uma grande lição, todos os versos são rápidos e bastante vívidos, o que torna uma experiência única ouvir e entender toda a música. É um grande exemplo de como a arte de contar histórias foi usada de maneira extremamente coesa por Immortal Technique e outros rappers dentro de quase cinco minutos de versos, criando um conceito único dentro desse projeto que recentemente fez 20 anos e merece ser revisitado.