Texto por Daniel dos Santos
Dos últimos livros que li ultimamente, uma imagem poderosa sempre me causa fascínio e mistério: o culto aos espíritos ancestrais da cultura Yorubá, presentes nas grandiosas obras O Mundo se Despedaça, do Chinua Achebe e Hibisco Roxo, da Chimamanda Ngozi Adichie – ambxs escritorxs consagradxs da Literatura Nigeriana. Máscaras africanas, vistas desde os tempos de sangue do neocolonialismo e imperialismo no continente africano como meros fetiches pendurados nas paredes de edificações tão brancas quanto seus donos ou expostas em museus europeus como amostras de estéticas selvagens e degeneradas, são alegorias sagradas portadas por espíritos desencarnados que não permanecem isolados e incólumes do mundo dos vivos, sempre presentes nos festivais nos quais dançam e celebram a eternidade, ou nos tribunais comunais quando são evocados pelos tambores para julgar os vivos por seus erros. As máscaras nos cultos aos ancestrais na cultura dos Yorubás representam a personalidade de determinado espírito, que desperta sua ira impetuosa quando determinada pessoa ousa arrancá-la de seu rosto, fazendo acontecer fenômenos sobrenaturais.
As máscaras dos espíritos ancestrais africanos podem servir como uma metáfora interessante para refletirmos sobre as personas artísticas da cultura Hip Hop que nós sacralizamos e cultuamos como verdadeiras entidades religiosas. É comum e frequente os processos de identificação subjetiva com determinados artistas, seja por suas personalidades ou por suas obras: você só vai consumir determinado tipo de rap se você, através da experiência de fruição artística, se sentir realmente afetado pela estética proposta. A funcionalidade e potencialidade da arte, no caso a música rap, de provocar afetos é o principal fator que faz com que nós possamos idolatrar aquele rapper favorito, declarando guerras hedonistas nas redes sociais para amar e defendê-lo.
Nesse sentido, tenho profanado muitos artistas da cultura Hip Hop que há tempos cultuava como verdadeiros deuses em meu altar particular. Isso porque sempre os tratei somente como espíritos sagrados, negligenciando a humanidade na qual suas máscaras estão pregadas. Isso se deve ao fato de insistirmos na ilusão de a música rap possuir a prepotência da verdade: acreditamos que os discursos proferidos pelo rapper ou MC anunciam e projetam sua vida real de maneira plena nos beats. Porém, tudo não passa de práticas de representação. Rappers e MC’s carregam, tal qual os espíritos ancestrais africanos, máscaras que são o que podemos chamar de personas.
Personas são as máscaras que os rappers e MC’s confeccionam para criar e sustentar as suas imagens públicas. As personas são ambíguas, dúbias e dissimuladoras: são inventadas nas fronteiras entre os âmbitos público e privado da vida social, compreendendo um entre-lugar do sujeito social, habitado por seres como as e os artistas. É uma espécie de alter-ego que possibilita o sujeito experimentar a vida social que se confunde entre aspectos realísticos e imaginários. São personagens verossímeis interpretados no teatro do entretenimento, alegorias do espetáculo da vida real. A persona é um avatar que permite que o sujeito social vivencie experiências não vividas e/ou recrie contextos e situações vivenciadas por ele mesmo, outros sujeitos ou personagens fictícios. Apesar de ocasionalmente serem vistos de maneira desassociadas e distintas, persona e sujeito social interagem e se auto-influenciam em vários níveis e graus na realidade.
Assim, quando nós falamos de determinado rapper ou MC, nós nos referimos à sua persona. Por exemplo, o Kendrick Lamar que conhecemos é o que K-Dot que sua persona artística nos permitiu conhecer pelos álbuns, pelos videoclipes, pelos shows, pelas plataformas midiáticas. Nunca saberemos quem é de fato a pessoa que está ocultada atrás da máscara, apesar de ousarmos sempre tentar arrancá-la. As máscaras sociais não são exclusivas às e aos artistas, pois nós também temos coleções particulares delas: cada sujeito social constrói sua imagem pública à sua maneira e vivemos fantasiando e camuflando nossos verdadeiros demônios. Porém, quando as máscaras de nossos rappers e MC’s favoritos caem de seus rostos, percebemos em um momento de deslumbramento que são humanos como qualquer outro, tornando-se deuses caídos. É muito foda quando um ídolo que nós divulgamos e enaltecemos revela seus piores demônios e se mostra contraditório, farsante e até mesmo hipócrita.
Acredito que é necessário para nós fãs de rap superar esse complexo de idolatria: vários rappers e MC’s são incríveis nos palcos, no YouTube ou nas capas dos jornais, mas são nos bastidores enquanto suas máscaras descansam sobre a mesa que eles revelam quem realmente são. É realmente muito difícil continuar gostando pra caralho de determinado rap mesmo sabendo que o artista por trás daquela letra e do beat é um escroto. Mais difícil ainda é exercitar isso em uma cultura política tão forte que é a cultura Hip Hop, na qual a identificação e representatividade possuem grande relevância e incidência sobre as subjetividades. Aprendi com a Linn da Quebrada que só nós podemos representar a nós mesmos, e isso tem se tornado uma verdade pra mim. Todo artista não está isento de responsabilidades em sua arte, e nós também devemos assumir as nossas e amadurecer nesse aspecto enquanto fãs e consumidores de arte. Como diz o Jay-Z, referenciando Kurt Cobain, rappers e MC’s são apenas artistas. Estúpidos e contagiosos.
Daniel Dos Santos (DanDan) é Mestre em Cultura e Sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UNEB), Licenciado em História pela Universidade do Estado da Bahia (UFBA), Membro Fundador e Pesquisador do Núcleo Interdisciplinar de Estudos Africanos e Afrobrasileiros (AfroUneb).