É sempre difícil pra um fã assíduo de RAP fazer a review de um disco, mais ainda se for do seu rapper favorito. Separar as emoções do lado racional e técnico sempre é uma tarefa muito difícil nessas situações, mas cá estamos. Um mês depois do lançamento de DAMN., finalmente essa review está nas ruas. Pelo menos a demora teve um bom motivo. 😀
Kendrick Lamar dispensa apresentações: após se consagrar definitivamente com seu tão aclamado To Pimp a Butterfly, o garoto de Compton (não mais tão garoto, convenhamos) conseguiu atingir mais ainda o cenário mainstream com o lançamento de DAMN., disco que se tornou platina antes de completar um mês nas ruas. Devemos lembrar também que K-Dot já tinha o respeito do underground por seu primeiro disco de estúdio, o Section 80., o coração da comunidade hip-hop com o masterpiece good kid m.A.A.d city, assim como TPAB foi imensamente respeitado pela crítica por sua experimentalidade e fusões de RAP com outros gêneros musicais. O underground, a comunidade hip-hop e os críticos: como Kendrick Lamar poderia se reinventar? O que ele vai fazer dessa vez?
Essas eram as perguntas que os fãs e o público em geral se faziam, até o momento em que o single “The Heart IV” atingiu as ruas. A música é a quarta parte de uma série que Kendrick já havia fazendo a alguns anos, sendo a primeira lançada em 2010, meses antes da mixtape Overly Dedicated. Entender essa série é essencial para compreender o caminho de Lamar, já que – excluindo TPAB – elas sempre são faixas que saem antes do lançamento dos discos e antecipam sua musicalidade, além de serem tracks que K-Dot rima versos da forma mais sincera, direto do “coração”. A questão é que na parte 4 o beat chega a mudar 4 vezes, o que deixou os fãs agitados sobre como seria a musicalidade do próximo projeto de Kendrick, que até então não tinha nome nem tracklist divulgados. Até que no dia 7 de abril, DAMN. é anunciado, e lançado na semana seguinte.
Devido a alguns elementos presentes na capa, a tracklist e outros fatores, algumas teorias sobre um possível álbum duplo eram especuladas, enquanto fãs piravam no novo disco, alguns outros reclamavam sobre uma falta de densidade e coesão em DAMN., dois fatores muito marcantes nos discos anteriores. No entanto, ao estudarmos melhor o projeto, percebemos que o último álbum de K-Dot é tão trabalhado quanto os outros. Para entender o conceito de DAMN., temos de partir da escolha do rapper pela personalidade de Kung Fu Kenny. Reafirmado durante todo o álbum, esse é o alter-ego que Kendrick usa para conduzir as ideias do disco. O Kung Fu é uma arte marcial com forte influência taoísta – que tem como principal noção o clássico yin-yang, a dualidade: não existe nada que é todo mal nem nada que é todo bom, ambos coexistem e se deve buscar o equilíbrio entre as partes. Todo o projeto gira em torno disso, desde a contra-capa ao nome das faixas, que tem suas oposições a todo momento: LOVE x LUST, PRIDE x HUMBLE.
Além disso, Deus permeia toda a temática do projeto. Deus, não a religiosidade ou alguma religião em específico, fato que fica marcado em YAH:
“I’m not a politician, I’m not ’bout a religion
I’m a Israelite, don’t call me Black no mo“
Entender essa presença divina é compreender as motivações das faixas e da direção do álbum. Após narrar a realidade da sua quebrada em GKMC, as problemáticas raciais e políticas dos EUA em TPAB, Kendrick Lamar agora se expõe mais do que nunca como ser-humano, se questionando se o que ele fez até aqui é capaz de o levar ao céu.
No entanto, o primeiro destaque do disco é a faixa DNA., que vem logo após a intro. Nela, vemos o alter-ego de Kung Fu Kenny nos ser apresentado pela primeira vez, rimando de forma visceral e em diversas perspectivas celebrando, criticando e explorando sua descendência e cultura negra. Após a catarse provocada pelas rimas de DNA, K-Dot traz uma sucessão de faixas mais tranquilas e reflexivas. Outra coisa que causou confusão na cabeça de fãs mais conservadores é a pluralidade musical do disco (coisa que havia sido anunciada em The Heart IV) pois temos um Kendrick muito mais melódico. O rapper de Compton canta diversos refrões do disco, como os excelentes em ELEMENT., LOYALTY. e LOVE. Em HUMBLE., a única faixa que veio como single do disco, Kendrick Lamar volta a rimar de uma forma mais firme, se reafirmando como um dos melhores do jogo e pedindo pra concorrência ser mais humilde. O que eu acho ser um ponto positivo é que o rapper usou uma faixa em específico para tratar desse tema e fez isso de uma forma interessante, lírica, não somente uma egotrip para precisar de reafirmar.
FEAR. particularmente é uma das faixas mais fundamentais do projeto. Nela, o rapper faz três versos em três perspectivas diferentes: um Kendrick Lamar de 7 anos, o de 17 e o de 27, e termina com um quarto verso refletindo como ele perdeu a coragem que tinha em sua infância. Essa faixa é essencial para compreender o disco e completar o quebra-cabeças junto com DUCKWORTH. Na última música do disco, K-Dot nos conta que o CEO da TDE poderia ter assassinado seu pai, o que resultaria no pequeno Kendrick crescer sem pai e Top Dawg pegar prisão perpétua, o que significa que nunca conheceríamos Kendrick Lamar Duckworth como o rapper de hoje.
Outra coisa que chama atenção em DAMN. são as participações. Nenhum rapper é creditado no trabalho, mas temos Zacari com um refrão chill em LOVE., Rihanna dropando um verso em LOYALTY. e surpreendentemente, o vocalista do U2, Bono Vox, a única participação substituível na minha visão, por mais que ele soe bem e apareça brevemente.
Como dito acima, DAMN. é um disco muito mais plural em musicalidade – e até mais pop (talvez isso explique a escolha dos feats) – coisa que também fez um pouco dos fãs torcerem o nariz. O projeto vai do boombap mais clássico até o bangers de trap, passando até pelo soul. Uma prova disso é a lista de produtores: temos os dinossauros 9th Wonder e Alchemist no fim do disco, Mike Will Made It e Sounwave na responsa dos hits e até mesmo a banda de jazz BADBADNOTGOOD e o prodígio do The Internet, Steve Lacy.
É bem verdade que DAMN. não tem o peso revolucionário de seus antecessores, mas é um excelente disco. Creio que a decepção de muitos fãs com o álbum seja pelo fato de o próprio rapper ter estabelecido um padrão de qualidade e exigência altíssimos, e o público se acostumou com isso. No entanto, o que se percebe é que pros ouvintes de hip-hop menos assíduos o disco é ótimo e muito mais acessível quando se fala em termos relacionados a compreensão da música de Kendrick, suas idéias, medos e humanidades.
Em DAMN. Kendrick Lamar não procura dar respostas ao ouvinte, mas propor reflexões e se abrir em relação ao temas que aborda, coisas que todos nós temos que lidar uma hora ou outra na vida: a própria identidade, orgulho, humildade, amor, lúxuria, Deus… O que torna o disco muito mais próximo de qualquer pessoa. Mostrando os dois lados da moeda e tentando achar um equilíbrio em sua vida, o rapper nos questiona: