“Contos e sonhos são verdades-sombras que vão perdurar quando os reles fatos não forem mais do que pó e cinzas esquecidas.”
É impossível escutar ‘Crônicas da Cidade Cinza’ sem lembrar a fala de Morfeus na HQ Sandman, de Neil Gaiman, a citação é uma grande ode aos contadores de histórias, sendo que esses se imortalizam através de suas respectivas narrativas. Em seu projeto lançado no ano de 2011, Ogi, construiu músicas com estruturas dramáticas (narrativas com personagens, ambientação e progressão do enredo com clímax e desfecho) de grande qualidade estética, em que sobressaem principalmente características como: inventividade, profundidade e meticulosidade. A obra é certamente item obrigatório aos ouvintes e fãs do rap nacional, portanto, nada mais justo que o RAPLOGIA fizesse um review sobre ‘Crônicas da Cidade Cinza’.
Cidade com nome de Santo abre o disco de Rodrigo Ogi, rapper nativo de São Paulo, que logo na primeira faixa traz uma citação de Plínio Marcos (escritor/jornalista), deixando bem claro o objetivo de seu projeto: retratar a cidade mais populosa do país e seus respectivos habitantes. Certamente uma tarefa extremamente complexa a de explorar a oitava maior aglomeração urbana do mundo, mas o trabalho feito por Ogi foi efetivado com êxito graças a seu incrível domínio da Arte do Storytelling.
Em Profissão Perigo, Ogi encarna o papel de um motoboy, atravessando a capital de São Paulo, cheia de arapucas na qual ele deve escapar. O eu-lírico apresenta os percalços que a ‘profissão perigo’ oferece, como por exemplo: o patrão cobrando trabalho, a intransigência de grande parte dos motoristas, o estresse causado pelo tráfego e até mesmo cães se metendo em sua frente, porém graças a sua experiência, ele acaba sempre terminando seu dia vivo. É impressionante o modo como Ogi faz com que o ouvinte se sinta como um motoboy enfrentando as ruas de São Paulo, sendo que graças a sua meticulosidade, compartilhamos de todas as aflições vivenciadas por aqueles que são literalmente ‘profissão perigo’.
Por que meu Deus? aborda personagens que estão de diferentes lados, um policial militar e um assaltante de banco, Ogi percorre um dia especifico na vida deles, na verdade o fatídico dia em que seus caminhos se entrelaçam, os dois acabam trocando tiros e o final da narrativa musical traz a inserção da voz de um radialista dando a noticia de que um assalto a banco terminou com a morte de duas pessoas, no caso, os personagens que acompanhávamos, o policial e o assaltante de banco. Fica claro nessa faixa específica, a técnica apurada de Ogi em interpretar diferentes personagens, oferecendo a cada um deles uma levada diferenciada, para que o ouvinte captasse perfeitamente seus respectivos estados de espírito, sendo que o rapper utiliza-se de um flow mais cadenciado/lento para delinear o policial, que no exercício de sua profissão deve ser frio e manter sempre o controle, enquanto que para interpretar o assaltante, Ogi dá uma leve acelerada em seu flow, para mostrar o quanto a adrenalina e o nervosismo percorriam o corpo do personagem.
Em Pronto pra guerra o rapper explora a história de um homem que terá de enfrentar sozinho seis ou sete homens, o personagem está sem seus amigos, o medo percorre sua alma, porém mesmo assim ele está preparado para guerra. Ele é atacado por todos, e vai se livrando de cada um de seus inimigos graças a ginga de sua capoeira. O refrão enaltece que um verdadeiro guerreiro mantém seus punhos cerrados e não dá pra trás de jeito nenhum. O término da música se dá com os homens recorrendo ao chefe, Zé Medalha, para que este enfrente o capoeirista solitário.
No rap Zé Medalha, temos a luta entre o lutador solitário e o chefão da quadrilha, Zé Medalha. A música é cheia de referências nostálgicas a personagens/lutadores de filmes e séries que fizeram parte da infância/adolescência de muita gente, como por exemplo: Daniel San, Van Damme, Bruce Lee e até mesmo Jiraiya. Zé Medalha utiliza armas brancas, dá cambalhotas no ar e é cheio de truques, porém ainda sim o guerreiro solitário vence a batalha, graças a sua agilidade e contra-ataques.
Besta Fera é certamente uma das melhores e mais complexas faixas do álbum, nela temos participações de Don Cesão, Dr. Caligari e Mascote. Na narrativa musical acompanhamos um homem que após beber muito acaba se sentindo mal, ele sai do bar e segue com seu carro, até que de repente a gasolina acaba, a sucessão de azares não para por aí, logo aparece em meio à madrugada um sujeito tipo alma-penada chamando-lhe de Zé Mané e mandando que ele entregue um cigarro. Os dois discutem e brigam, o personagem principal não aguenta mais e decide recorrer aos céus, rezando para que tudo aquilo acabe. E não é que dá certo?! O sujeito brigão se dissipa feito fumaça, a azia acaba, os calafrios passam e seus amigos lhe ajudam a retornar ao seu carro para enfim, poder seguir para sua casa. A faixa é aberta a diferentes interpretações, já que o ouvinte pode achar que o sujeito briguento era o próprio Diabo querendo destruir o protagonista; outra interpretação possível é que tudo não passou de devaneios, já que o personagem estava sob o efeito do álcool, enfim, vale a pena debater com os amigos sobre todas essas possibilidades de leituras.
A vaga conta a história de um homem que tem inúmeras tentações a sua frente para que consiga dinheiro fácil, porém de forma ilícita. No fim das contas sua consciência acaba sempre o levando para o caminho certo, sendo que mesmo quando ele comete um erro, a honestidade fala mais alto e o personagem volta atrás para consertar a inconsequência cometida.
A corrida dos ratos fala, acima de tudo, sobre a sobrevivência, Ogi mostra o quanto é difícil progredir na vida, já que os impostos são muitos e caros, o limite do cartão estourou, há necessidade de manter a família (mulher e filho), por isso o personagem se vê preso em seu trabalho, no qual seu patrão não o valoriza, apenas pensa em enriquecer e explorar seus empregados. O trabalho suga sua alma e corrói seu estado físico, ele se vê preso em pagar parcelas e não consegue ver um futuro agradável, é como se ele fosse um rato correndo em direção a um abismo literalmente, já que um ataque cardíaco está prestes a ocorrer e levar ele de vez pra debaixo da terra.
Premonição traz um personagem que se sente confuso em seguir seu lado mais sensitivo ou simplesmente deixá-lo de lado. Uma voz interior diz para ele que algo de mal está prestes a ocorrer e por isso ele deve abortar uma missão que tinha pra fazer na madrugada. Na faixa, Ogi explora esse tipo de sexto sentido que temos, essa estranha sensação que surge do nada para nos alertar de algo que está para acontecer, um fenômeno praticamente impossível de ser descrito por qualquer tipo de ciência, mas que quando surge até mesmo nos mais descrentes, acaba fazendo com que pensem seriamente em seguir essa voz/premonição.
Em Noite Fria temos um pichador rememorando uma noite específica em que saiu para pichar junto com os amigos pela noite de São Paulo, especificamente numa sexta-feira 13. O grupo anda por diversos lugares de São Paulo, e de repente percebem que há policiais na vigia, é então que eles se escondem numa casa ao lado, porém o morador cagueta os pichadores, consequentemente os cães adestrados tentam morder eles, além disso, também acabam levando socos dos policiais. Um dos pichadores diz que eles não eram bandidos, o que acaba provocando a fúria de um dos policiais, que acaba por iniciar um espancamento no pichador. Logo depois o policial aponta a arma para o narrador e puxa o gatilho, o som de tiros finaliza a música, causando grande impacto no ouvinte, já que surpreendentemente se descobre que na verdade o narrador é um morto contando sua história, especificamente a noite em que foi assassinado.
Eu tive um sonho aborda a saída de um nordestino de sua terra em procura de novas oportunidades, ele se despede de seu pai e segue no caminhão em direção a São Paulo. Logo quando chega ao gigante cinza, o personagem se vê maravilhado com aquela nova terra, o sonho de construir paredes já não parecia tão distante e com os pés finalmente firmados na selva de pedra, agora era hora de trabalhar. Vale ressaltar que Rodrigo Ogi realiza habilmente referências a cultura nordestina, para dar uma fidelidade maior ao seu personagem e também para que os ouvintes conhecessem mais sobre essa região e seus habitantes, sendo que o personagem dotado por grande religiosidade agradece ao Padim Ciço Rei (Padre Cícero Romão Batista) – figura muito querida e admirada, sendo inclusive considerado santo pelos nordestinos. Outra referência observada é a do forró, ritmo e dança típica da região nordestina.
Na estrofe final, o personagem avalia como conseguiu realizar seu sonho, se aposentando na construção civil, tendo construído grande parte do gigante cinza, além disso, conseguiu criar bem os seus 5 filhos.
Em Monstro Gigante, Ogi conta com a participação de Espião e Munhoz para delinear na faixa as características da cidade de São Paulo. São tantos os problemas que envolvem a cidade, como por exemplo, a superpopulação, o caos do trânsito, a poluição e os prédios que estão tomando cada vez mais conta de tudo, a partir disso, fica claro que para sobreviver e ascender na selva de pedra é necessário ser praticamente um ninja, como diz Ogi. Espião e Munhoz também tecem perfeitamente os problemas enfrentados pelos cidadãos de Sampa, e como eles nunca abaixam a cabeça e seguem em frente na luta pelo seu espaço e sobrevivência.
Sókizila traz Savave e HenRick Fuentes ao lado de Ogi, na música temos uma história sobre um sujeito supersticioso que responsabiliza o azar como culpado de todos os problemas que estão lhe tragando para o fundo do poço. O desespero é tanto, que o azarado decide ir num Terreiro de Umbanda, pedindo para que o pai de santo tirasse todo o mau agouro que consumia o sujeito.
Minha Sorte Mudou é a continuação da música anterior, sendo que o personagem começa a se sentir mudado, acha um punhado de dinheiro no chão, dessa vez a sorte está do seu lado e ele se sente mais confiante. O sujeito encontra uma mulher, chamada Iolanda, os dois saem junto, e ele se dá bem: “Eu não tinha o almoço, descolei uma janta!/ Levei por cinco letras, fiz cabelo e bigode”. Tudo parece perfeito, até que de repente a mulher saí na rua dizendo que havia sido estuprada por ele. O irmão dela, João Sandoval, surge e diz ao delegado para efetuar a prisão do protagonista, o povo assisti a tudo, enquanto as pernas do ‘suspeito’ tremem. Mas quando parecia que a sorte havia o abandonado, tudo muda quando o delegado recebe no rádio a notícia sobre uma mulher chamada Iolanda e de um homem chamado João Sandoval que estavam sendo procurados por aplicarem o golpe do suposto estupro em muitos lugares. E por fim, nosso protagonista apenas presta depoimento e sai livre lado a lado novamente com sua sorte.
Os tempos mudam conta com a participação de Lurdez da Luz, a faixa mostra um casal no qual o homem é o responsável em trabalhar com os serviços domésticos da casa, enquanto a mulher trabalha fora e controla os gastos financeiros do casal. É interessante ressaltar o modo como a faixa foge totalmente dos estereótipos construídos ao longo dos anos por uma sociedade altamente machista, sendo que a escolha de Lurdez da Luz para interpretar a mulher independente e moderna é perfeita, já que a rapper/cantora tem talento de sobra e também vêm a acrescentar muito no cenário da música e do rap nacional, ajudando a quebrar o preconceito que infelizmente ainda muitas pessoas têm de que mulheres não sabem fazer rap. Outro aspecto interessante é de que Ogi constrói o personagem masculino cheio de fragilidades e dotado por uma sensibilidade ímpar, fugindo totalmente da imagem estereotipada construída pela sociedade de que o homem é o ser das cavernas sem qualquer tipo de sentimento e fragilidades.
Tamo aí no rolê tem a participação de Rodrigo Brandão, que ao lado de Ogi tece a história de personagens que estão no rolê procurando apenas relaxar dos problemas que atormentam o cotidiano. A tônica da música é sobre viver o hoje e agora, deixando a preocupação sobre o amanhã de lado.
Na faixa Eu me perdi na madrugada mergulhamos junto com o eu-lírico nas madrugadas de São Paulo, bebidas, diversão e mulheres… Mas nada é a mil maravilhas que parece, tanto que as mulheres roubam a carteira do personagem sem ele nem perceber, porém ele sempre foi ligeiro e tinha o graúdo guardado numa parte secreta. O rapper é extramente meticuloso em suas descrições, consequentemente o ouvinte monta facilmente a história em sua mente como se estivesse assistindo a um filme.
Em 180 por hora temos a história de um sujeito que foge de uma viatura da polícia, Ogi descreve perfeitamente desde o ambiente que o personagem percorre até os sentimentos e sensações que tomam seu corpo, além disso, o beat utilizado dá um tom ainda mais realista à narrativa musical, fornecendo ao ouvinte efeitos sensoriais como tensão e adrenalina.
Segunda chance é a faixa final do álbum, nela podemos encarar uma história isolada ou também como uma sequência da música anterior, em que após o acidente sofrido, o personagem enxerga uma luz branca em sua frente e também presencia toda sua vida passar como se fosse uma novela em sua mente, características que são bastante relatadas por pessoas que estiveram prestes a morrer. O personagem também vê um homem de batina e barba longa carregando uma cruz, na verdade ele está ali para julgar o sujeito pecador. A música traz uma fusão de diferentes perspectivas, sendo uma delas a do sujeito que está entre a vida e a morte, enquanto a outra se concentra em alguém que parece ser o seu amigo, orando para que o Senhor de uma chance ao moribundo. É interessante notar como Ogi trabalha nessa faixa e também em algumas outras, questões de fé, religiosidade e diferentes crenças, abordando o fato de que o ser humano, independente do dogma escolhido, acaba sempre procurando pela paz interior, é justamente essa busca que nos torna iguais. Nos segundos finais da faixa, surge mais uma citação do escritor e jornalista Plínio Marcos para fechar de vez ‘Crônicas da Cidade Cinza’: “Eu conto histórias. Histórias que eu vi com esses olhos que a terra há de comer um dia, ou histórias que eu ouvi, no buxixo das curriolas. Eu juro por essa luz que me ilumina, que conto as histórias sem aumentar um ponto. Se algum talento eu tenho, por ventura, é de ver e ouvir a gente minha”.