Em nossa busca incessante por contar a história do rap nacional e internacional, fomos até a casa do Rodrigo Zorack e lá encontramos com Munhoz e Venom. Eles são o Ascendência Mista, histórico grupo de São Paulo que, nos anos 2000, fez parte do surgimento e fortalecimento na cena underground paulista. Com um único disco lançado – “Produto Mentalfaturado”, o trio fez história com suas rimas ácidas, sarcásticas e cheias de referências politicas e anti capitalista.

O grupo acabou, mas a amizade dos três continua como nos velhos tempos, e foi assim que conduzimos o nosso papo: Entre cervejas, cigarros, jazz na vitrola, histórias e relatos sinceros de tempos onde o rap não trazia dinheiro e tudo o que se fazia era por amor e necessidade de expressão. E nisso temos uma dimensão de tempos onde não existiam redes sociais, celulares, câmeras modernas e o que ficou foram histórias de 3 lendas vivas do nosso rap, que vocês poderão acompanhar abaixo.

Zorack, Venom e Munhoz. Foto retirada da página do Ascendência Mista no facebook

Zorack, Venom e Munhoz. Foto retirada da página do Ascendência Mista no facebook

Raplogia: Antes de mais nada acho que eu queria explicar um pouco o do porque a gente quis fazer essa entrevista. Falando primeiro de registro histórico do rap ,a gente demorou muito para ter mídia especializada que registrasse a parada, vocês tão ligados não é? A única entrevista de vocês que a gente teve acesso foi com o Bocada Forte,  a única na internet. E falando de fotografia, texto, o que quer seja, é muito difícil achar um registro histórico. E a gente tendo um rolê de rap que a gente curte muito essas paradas dessa época assim, e daí que surgiu essa ideia de falar não só com vocês mas com vários outros grupos dessa cena.

Munhoz: Tem uma outra coisa além de tudo isso, mas nós pegamos o período que ocorre a transição do analógico pro digital. então assim, a gente tinha muita coisa captada com câmera digital, então cê imagina a qualidade? (risos) Era época de câmera com, tipo, 1 megapixel, uma câmera fudida era 1 megapixel.

Eu lembro uma vez que a gente foi fazer a primeira sessão pra gravar para aquela coletânea que o Parteum agilizo. Eu peguei uma câmera do meu trampo, a câmera era uma Mavica da Sony que a mídia era um flop disk (risos). Então vocês imaginam, devia caber sei lá, vinte fotos, algo assim..

Nessa época a gente tocava pra nós, várias vezes a gente ia fazer um show e era tipo os grupos que estavam tocando, as namoradas da galera, ,meia dúzia de amigo. O show mais legal que a gente fez, que eu nem lembro nome daquele lugar, ficava na augusta (Rua Augusta, em São Paulo), ,que o Zé e o Nuts fizeram aquelas noites. Teve Quinto Andar, Academia, foi o show que a gente tocou com o Primo (DJ Primo) e com King ao mesmo tempo, a gente tocou com dois DJS, mano!

Tem uma foto de um lugar que não durou muito tempo (Orbital), mas que assim: Quem fazia a festa era o Zé e o Nuts. Mas era isso, show de 200 pessoas,a gente tava feliz, tipo: “puta lugar cheio pra caralho, tamo tocando pra 200 pessoas”. Mas sério, tinha uma foto do palco que em que nós conhecíamos todo mundo cara (risos)

Nesse sentido, tem uma coisa diferente do que existe hoje em dia. Existiu uma cena de certa maneira, todo mundo se conhecia, os artistas e o público eram mais ou menos meio que a mesma coisa, não tinha muita desculpa. Isso em alguns aspectos era bom, em outros era foda porque cê tava no show e tinha um cara meio que de braço cruzado te encarando, tipo “porque esse cara tá no palco e eu não?”.

Raplogia: O rap tem muito disso …

Munhoz: Eu acho natural cara, mas é que você não sabe o que era isso a 20 anos Agora não, os artista tem público, tirando sei lá, alguém que eu não conheço que deve tá fazendo show lá no Morfeus pra 50 pessoas.

Aí provavelmente tem umas pessoas que pra te ratiar ficam: “Pô eu que queria tá fazendo show aqui”, pessoa não consegue se agilizar nem no nível mais baixo. Mas assim, tinha um circuito das rádios, tinha o circuito da 105 e da RCP. Nos programas ali do União Racial fecharam e tal …

Os caras da rádio faziam umas coletânea que agenciava os grupo. E os grupos virava meio que perreco desses caras, só tocavam nesses eventos de rap nacional, que literalmente saia tiroteio nos eventos. Os cara contavam que um dos caras tipo morreu abraçado num cara, mano. Os caras contava umas histórias que,tipo… O King mesmo contava umas história desses role que tipo, é isso,tá você tava lá tocando num evento pra tipo, 3 mil pessoas todo fim de semana e não ganhava um centavo de cache.

A fortuna acumulada de apenas 4 nobres
Que somadas equivalem ao PIB de 42 nações pobre
Onde a exploração é abusiva e o trabalho escravo é na cara
Mas a luta anti-imperialista é trazida através de uma Rhima Rhara

Raplogia: Mas antes disso, como que vocês começaram nesse barato de RAP?

Munhoz: Eu e o Venom teve banda, passamos a adolescência inteira tirando música, tocando baixo e tirando metal. A gente tocava o repertório do Slayer com o Metallica. Eu não tocava bem guitarra, então resolvi tocar baixo, porque no metal ninguém quer tocar baixo. Só que ai você começa a tocar baixo, ai começa a ouvir som que é legal em baixo, porque baixo no metal é uma bosta. Ai fui ouvir funky, e começamos uma banda de Rap Core ali no fim dos 90, e é quando essa banda meio que deu uma morrida..

Eu tava tocando também em uma outra banda e nessa banda tinha uma bateria eletrônica, acho que da Zoom, que era uma bateria que também tinha meio que uns timbres de baixo. Porra, já matava dois coelhos com uma cajadada só (Risos). Ai pegava essa bateria com quatro canais, ai tinha um camarada nosso que tocava teclado num grupo de pagode.

Quando ele não tava usando teclado, a gente pegava o teclado dele emprestado, e assim começamos a fazer os primeiros negócios. Nisso que a gente começou a fazer, o Duença (DJ do Rua de Baixo) – que cresceu no meu bairro, Butantã – tava meio que voltando pro bairro e por conta dele que a gente conheceu o Espião. O Espião já tinha sampler, então foi ele quem mostrou pra gente um monte de coisa, como ele trabalhava e tal. Os caras não tocavam porra nenhuma e a gente tocava alguma coisa, a gente sabia mexer naquilo, só que a gente não tinha experiência com sampler. Os caras tinham muita informação de rap que a gente não tinha, simplesmente não tinha,a gente era uns metaleiro, mano. Isso foi entre 97 e 98. E nosso rolê era segunda feira ia no Branca Leone ouvia rap comercial, quinta feira ia no Love E ia ouvir Drum n Bass, sexta feira ia na Class pra ouvir Wu tang. No sábado ia na Vila Madalena tomar cachaça na rua. E ai no domingo ia na festa que tinha na torre.

Flyer de show do Ascendência Mista em Curitiba, 2002. Foto retirada da página do grupo no facebook.

Flyer de show do Ascendência Mista em Curitiba, 2002. Foto retirada da página do grupo no facebook.

Raplogia: E vocês se conheceram onde?

Venom: Eu conheço o Munhoz desde os 6 anos de idade. O Zorack é amigo do Duenssa, se conheceram no bairro. A gente ia na casa do Duença e chegava o Zorack, ia num rolê com a galera e lá tava o Zorack. Ai gente encontrou com o Duença e tal, e ele: “Ai mano, cês gostam de rap, cola na minha festa e tal”. Ele passava, nossa janela era a de baixo, a primeira do prédio, ai ele passava, eu tava ouvindo um rap, ai ele assobiava, “ou vamo ali”, videogame ou um rap. Ai lembro a primeira vez que eu fui e tava o Zorack, tava o Lelis e eu não lembro quem mais tava.

E chegava lá, os caras tavam gravando uma fitinha e tal. A gente entrou no quarto dele, era uma cama no canto, e mano, fileiras e fileiras só de CD de rap. Ele dividia por Nova York, Los Angeles, trilha de filme. E o cara sabia todos de cor e salteado.

E a gente ficava ali trocando ideia e ficava vendo clipe. Ai aparecia o Method Man, e a gente ficava tipo: “Que porra é essa”, “É Wu Tang Clan!”. Ai era 36 Chambers, GZA, Ol’ Dirty Bastard, e a gente tipo: “Caralhoooo!”. E foi assim que começamos a colar no Espião.

Zorack: Esse bagulho do cd, deles não deixarem a gente gravar, me lembrou que na verdade que eu comecei ouvindo Racionais, Thaíde, e eu gostava muito do São Paulo está se armando, do Comando DMC. E ai o irmão do Léo me emprestou uma fita do Wu tang, Beastie Boys, então ficava o Wu tang de um lado e Beastie Boys do outro (da fita k7). E,foi depois disso que eu conheci o Lelis na real, eu fui estudar a fita, mas ai voltando uns anos,porque Wu tang é de 93. Então eu só fiz o Hiperlink por conta de que o Léo não queria me emprestar a fita, porque ninguém poderia ouvir aquilo, tá ligado?

Raplogia: E dá pra ver que vocês tinham muita influência externa musicalmente e de letra, na contramão de todo o rap nacional, que tinha essa coisa mais pragmática do Gangsta rap, o rap de protesto. De onde que veio toda essa ideia de poder fazer um rap autoral?

Munhoz: Nosso rap é de protesto, de alguma maneira. Mas acho que isso é uma coisa que… Eu já vi muito artista que eu gosto que era da West Coast, que gostavam da East Coast, e os caras se sentiam meio peixe fora da água, porque, basicamente, traçando um paralelo: Você tem o G-Funk que é uma coisa mais direta e ligado ao Storytelling, é mais suave. você tá num lugar que é quente o ano inteiro, então isso vai refletir no seu estado de espírito e o modo como você vê o mundo. E a East Coast não, é meio paranoia, os caras ficam o tempo todo no frio, você tem mais tempo pra estudar. Por exemplo, o Wu Tang Clan não é só as rimas em si, eles estão te convidando pra todo um resto, eles criam toda uma mitologia, seja através do xadrez, seja através dos filmes do Kung Fu, todos tem apelido de personagens de histórias em quadrinhos. Então é um convite pra você conhecer e a partir do momento que você entra naquilo, você tá entrando num universo diferente.

E é diferente do Snoop cantando: “Cause my mind in my Money,and Money on my mind”. E tudo bem, porque é legal e ao mesmo tempo te passa uma imagem muito clara, consigo me imaginar num Impala ali e pá. E eu não sei se vocês já estudaram isso, mas tinha todo o lance dos 5% (Nação dos 5%), que era uma doutrina toda atravessada do Islamismo, com numerologia e tudo mais. Ai você vê que isso é um negro da diáspora criando sua própria mitologia.

Raplogia: O Rhima Rhara surgiu dessa vivência toda? Vocês estavam quando começou?

Zorack: Primeiro vem como se formou o Ascendência Mista. Tinha uma coletânea que eu ia cantar um som, e ai era só eles dois o Ascendência na época (Venom e Munhoz), e aí pediram pra incluir artistas mais famosos, que era a coletânea do Rocha que você falou não é, Munhoz?

Munhoz: Era do Fabio Luiz. Iia ter uma faixa só do Zorack e uma faixa só do Ascendência, e a gente era o ponto mais fraco da corda. Então ou ia ter uma música do Zorack ou ia ter uma música de Ascendência. Só que a pessoa não teve a hombridade de falar: “ó, ,acho que vocês não tão preparados …”. Ai no fim ficou meio que pra gente resolver, e aí gente falou: “Quer saber? Vamos fazer um som nosso com a sua participação (Zorack), e a gente já resolve esse problema “.

Zorack: Esse som é o “Escalação” que tem no nosso disco. Vocês não tão entendendo o que era felicidade de pegar um cd nosso, puta negócio maravilhoso ter uma música sua num cd gravado (risos).

O Espião já tinha lançado o “Rima Forte”, e nisso o Elo da Corrente, os dois moleques com 17 anos, fizeram contato com ele,: “Pô, trombei os moleques, os moleques são dahora”, e a gente ouviu o som, achou do caralho e marcamos de trombar os moleques.

Munhoz: Porque na verdade o lance da Rhima Rhara era esse, o lance da coincidência. Aquele som “Não mudou nada”, que o Espião lançou em 99, ele fala “Rhima Rhara”, e os moleques gravaram um som depois e usam ese termo, aí rolou um negócio de tipo: “Mano, você falou isso aqui e tal, pô … “.E aí saiu em uma coletânea o “Fumo e Vortemo”, e acho que aí rolou o contato do Espião com os moleques do Elo. E o Espião gravou com o microfone de plástico do PC. Nessa época também o Parteum começou a colar, com o Kamau, e o Kamau já fazia rap. Parteum conhecia o Kamau do Skate.

Zorack: Mas o Parteum começou a colar com o Spy, porque o Spy era o único que tinha a porra do sampler ,sequenciadora, o Double Deck,que a gente tava falando… O primeiro sampler era uma caixinha que se a música tivesse 3 minutos, você tinha que apertar o botão durante 3 minutos, e se você errasse tinha que voltar desde de o começo.

Munhoz: E não só isso, a maquina não podia sair da tomada, não tinha memória. Você ligava ela na tomada e sampleava nela, ai você tinha duas opções que era deixar um looping nele, o que era quase impossível, por que eram dois botões, era uma traquitana… analógica,tipo… Bizarra. E editar era ruim, era muito difícil.

Zorack: Então você fechava o looping, e quando ele fechava você tem que apertar play. Você fechava na mão o looping, depois tinha que dar play pra gravar. Então pra fechar era tipo um terror.

Munhoz: De alguma maneira o que a gente fazia era meio avançado, porque a gente ligava o teclado do nosso amigo pagodeiro na bateria eletrônica,como se fosse uma conexão MIDI. então a gente dava o play, tocava mais ou menos o que a gente queria ouvir, mais ou menos aonde a gente queria. E aí você gravava numa K7, num deck, você gravava primeiro o instrumental, passava de uma fita pro outr. Aí você botava um instrumental rolandoe a gravava um verso, e você pode ver que, por isso, varias demos dessa época tem o mesmo verso duas vezes.

Zorack: Ai gente trombou o Elo e o Parteum colou no Spy e fez meio que um laboratório, nessa intenção de fazer rap. Aí juntou todo mundo, o Spy era a dorsal da parada, o Duença tocava pra ele. O primeiro som que eu gravei foi em 98 com o Spy, o tio do Anderson que fazia um forró. Existiam quatro pontas, e todas eram ligadas ao Espião. Só que a gente via Boot Camp Clik, Hieroglyphics, um monte dessas paradas…

Venom: E você falou do Espião , ele trabalhava na Varig, no aeroporto. Então ele tinha acesso a “La Selva”, que era uma das únicas bancas de jornal que vendia a The Source. Então ele tinha tudo, o Espião chegava: “ô, tá saindo isso aqui lá fora”. Então, dos nossos amigos, ele era o único que já falava inglês pra caralho, estudava muito sobre rap…

Zorack: É tipo assim, eu não sei em quem vocês piram hoje em dia, mas vocês podem ver as fotos dos caras nas páginas de revista e sites. Mas imagina você pegar a foto do Biz Markie naquela época, que você não tinha internet, não chegava nada aqui, não existia na mídia de rap, não tocava na rádio. Então você sabia quem era o cara por que você olhava a revista gringa e falava: “Caralho!”.

Mas enfim, o Espião foi o catalisador de informação de som, e o Duença foi o ponto de ligação, foi ele quem conheceu todo mundo, foi ele quem conheceu o Lelis, e eu conheci o Lelis por conta dele. Então o Duença era a rede social, o Facebook, e o Espião era o Google.

Água mole em pedra dura tanto bate ate que acaba a água
Porque o que bom dura pouco como alegria de pobre
Que paga imposto pra nobre viciado em farinha
Que nada no dinheiro como o tio patinhas
Com a piscina lotada, quem ri por ultimo
e porque não entendeu a piada

Raplogia: E depois desse som que vocês fizeram com o Zorack, como surgiu o nome do grupo e se tornou a formação atual?

Munhoz: Ascendência é o contrário de descendência, quem são seus descendentes? Somos 2 brancos e um negro, é isso.

Venom: O Zorack saiu da cohab e veio morar em casa, no meu quarto. E aí gente sempre trocava ideia, jogava videogame ,trabalhava, e o Munhoz era o único que ganhava grana legal, então nós decidimos comprar uma MPC. E ficamos tipo: “O Que é MPC?!”, ”MPC é essa parada que faz beat”, “Então vamos comprar a MPC, é isso que a gente precisa, essa porra é foda”.

Munhoz: Na verdade isso aconteceu quando saiu o “Eu tira é onda”, do Marcelo D2,. Ele começou a dar entrevista falando que fez o disco com um sampler barato, custava 800 dólares e etc. Aí a gente já tinha internet, e digitava “MPC”, uma hora depois aparece alguma coisa ali, e eu fiquei: “Mano, eu já vi essa porra na capa de uma par de disco. Essa que é a MPC, esse barato cinza ,feio do caralho”.

Eu trabalhava num esquema e recebi uma proposta de emprego, e meu patrão na época disse: “Fica ai, eu tenho uma permuta com companhia aérea, to ligado que seu sonho é conhecer Nova York, te arranjo um voo”. Só que eu trabalhava 12 horas por dia, naquele ritmo que a gente tava de rolê, eu ganhava dinheiro mas gastava ele de uma maneira ridícula.

Nesse meio tempo um outro amigo nosso de infância virou nosso DJ, que a gente sabia que ele era nerd, que ia se aplicar muito, rapidinho ele comprou um par de toca discos. Ai eu convenci ele ir pra NY comigo, porque o negócio é o seguinte: Eu tinha que tirar o visto, e ele que era um pouco mais boy que a gente, já tinha um visto de 10 anos, então falei: “Cara, cola comigo, porque se der alguma merda, vai você e trás a MPC”. E foi isso mesmo que aconteceu! Meu visto foi negado, mas ele voltou de NY com a MPC na mala. A gente fazia turno, eu o Venom e o Flávio, esse nosso amigo que era DJ na época. A gente com o manual e com a máquina não entendiamos nada. Então um mexia, todo mundo meio de ressaca, meio dormindo, meio acordado, três cara dormindo num quarto 3×4, mas era isso. Todo mundo tava dormindo, quando um acordava ia mexer na maquina. Aí o Venom acordava, e eu falava pra ele: “Aprendi, isso e isso”, e passava a caminhada. Aí eu ia dormir e outro assumia a MPC e ficava trabalhando. E foi assim que aprendemos a mexer nela.

Mas aí eu comecei a morar sozinho, num apartamento no centro, mas colava todo mundo. Morava só eu na casa mas a população era flutuante (risos). O laboratório principal foi o porão do Espião, mas de onde saíram as coisas mesmo foi a casa do Mumu, que virou um estúdio mesmo.

Ascendência Mista

Ascendência Mista

Raplogia: Como vocês formaram esse conceito do disco, num viés político? Essa coisa anticapitalista e tudo mais. Porque a gente entende que o rap nacional tem aquela coisa militante, mas não era da maneira como vocês faziam. Tem rima que o Zorack fala de Davos, tá ligado, G8, distribuição de renda, isso ninguém fazia.

Munhoz: Mano, a consciência política do rap nacional até então tinha a ver com crônica. Eu to olhando isso aqui, eu tô relatando isso aqui, eu sou testemunha ocular disso aqui. E eu acho que os outros tem que saber o que tá acontecendo a 15/20km da Avenida Paulista. E a gente tava sei lá… Eu gostava de Rage Against the Machine, e eles tem uma música chamada “Year of the Boomerang”. E era tipo um livro de um teórico que falou: “Se existe alguma situação de opressão onde a maioria é oprimida, em algum momento a coisa volta”, que era a situação da África do Sul, que era uma maioria numérica sendo tratada como minoria. Uma hora o caldo entorna. E é tipo isso, uma hora você começa a observar a dinâmica. A gente é cria, a gente nasceu na década de 70 e tivemos nossa formação na década de 90. 2019 é doce perto da década de 90.

O mundo era mais selvagem, a gente tinha menos oportunidade, menos informação, era mais violento no geral. E a gente vinha de um processo onde a política neoliberal mostrou que foi extremamente desastrosa. Então assim, não tinha muita esperança, não tinha muita perspectiva. O fato do Lula ter aparecido e assumido o poder era algo que ninguém no seu sonho mais otimista imaginava.

E foi essa gestão que gerou uma série de artistas que não existiriam em outra época, se não fosse na era Lula. O Emicida não seria quem ele é se não fossem as condições daquele momento, que são as condições econômicas, são as condições simbólicas que se criaram, de estar mais aberto pra entender as questões do Brasil, as diferenças que a gente tem, junto com um processo de maturação das ferramentas de rede social.

Raplogia: Mas é louco que, em vários reviews do disco de vocês, falam que o “Produto mentalfaturado” é um disco divertido e sarcástico …

Zorack: Sarcasmo é inteligência. Sarcasmo é um humor inteligente.

Mas fazendo um paralelo com a cena de hoje: Eu não entendo a cena do rap de hoje, tá ligado? Tem vários nomes que já vieram ao meu ouvido que eu não conheço, não sei o publico, não sei se eles ganham dinheiro. Mas o que eu entendo dos principais nomes que seriam representantes do Racionais é o Emicida, e o representante de alguém que estava “antes” do racionais é o Djonga. Eles não falam besteira, e eles não tem nada ver com nosso rap, eles nasceram do nosso rap e disso você pode ter certeza. Emicida dividiu batalha com nossos amigos, acho que foi a primeira vez que vi o Emicida na minha vida. Eu tive um break com o rap, porque depois eu não voltei a ter o contato que eu tinha com rap como na época que a gente fazia, mas a gente foi no aniversário do Fugolli e tava lá o Emicida num canto que nem falava direito. E o que ele se tornou é bizarro! Djonga de uma geração depois da dele também fala coisa séria, velho. E enfim, na nossa época falavam que Racionais era de protesto e Ascendência não, que era rap de boy.

RaplogiaMas é porque a galera acha que o povo da quebrada só sofre na mão da polícia, não vê que existem outras formas de opressão, depressão…

Munhoz: A gente era boy porque assim, circunstâncias da vida. Longe da gente ter as melhores condições da vida, mas a gente tinha um mínimo, a gente teve acesso, um pouco mais de acesso. As vezes as pessoas não entendiam o que a gente tava falando, e várias vezes tinha gente que falava mal do ascendência,,porque não entendia. Hoje em dia é muito rápido, alguém falou alguma coisa de você, você procura no youtube, rapidinho você puxa a ficha. Antigamente não, alguém falava: “fulano é cuzão, fulano é boy”, e você não tinha como confirmar até encontrar a pessoa, e quando olhou na bola do nosso olho, já pronto pro confronto, os caras entendiam e ficavam: “Não, mano, esses caras não são muito diferente da gente”.

Raplogia: Acho que também sempre tem uma nova geração que vai tendo uma ruptura com a geração anterior.O Emicida mesmo foi criticado demais, “Tá fazendo rap triste, rap de boy” …

Munhoz: Então porque a gente tem que nivelar as coisas pelo nível mais baixo? Se a gente for nivelar pelo nível mais baixo, a gente não vai pra lugar nenhum em nada na vida. A gente tem que almejar coisas mais altas! Vamos alcançar elas? Não ,mas pelo menos você mirou lá no alto, se você alcançou metade é melhor do que continuar numa mediocridade que todo mundo já entende, todo mundo já aceita.

A gente cresceu onde toda vez que um disco do Racionais saia, 80% do rap nacional parava o que tava fazendo, as pessoas deixavam de lançar disco pronto. E pelo medo, porque os caras mudavam, os caras tavam fazendo o role deles, e a galera estava sempre perseguindo o Racionais do passado

E era uma coisa que várias vezes falaram pra mim: “Os moleques da quebrada tão alcançando vocês”, e eu falava: “Eles tão alcançando a minha versão de 5 anos atrás, eles não são quem eu sou. Porque em primeiro lugar, isso não é uma disputa e em segundo lugar, que bom que eles tão aprendendo, sinal de que eu contribui para elevar o nível.”

Zorack: Sem falsa modéstia, o nosso disco foi um dos melhores que já foram feitos, não de técnica,de mixagem,de nada. Todo mundo levanta o Quinto Andar pra caralho, o Quinto Andar eram dez caras espalhados. Marechal é foda, o melhor mc, o Matéria Prima é um letrista fora de série ,o jogo de palavras dele é bizarro..

Só que o Ascendência fez um disco, a gente teve uma efetividade. inclusive tem o Materia Prima no nosso disco, que dormiu na casa do Munhoz por duas semanas (risos). E voltando, o Quinto Andar tomou uma dimensão maior do que a gente, mas acho que, historicamente… isso não ferida egôica nem nada, mas você vê que o Kamau tava na nossa casa, Materia, o Elo, Afroindigena ,todo mundo passou por ali. A gente interferiu na transição e no entendimento dos caras da perifa saber o que a gente fazia, então eu acho que nosso disco é clássico pra caralho.

Esses dias um cara de Recife me mandou mensagem por conta de um post que eu fiz, falando: “trocar ideia com vocês é foda, tipo minha igreja”. Ouvir isso de um cara de Recife, com metade da minha idade é igual vocês com 20 e poucos anos vindo aqui em casa querendo trocar ideia com a gente, é uma coisa muito representativa velho, embora só o Venom continue trampando com rap.

Raplogia: Eu acho que os anos 2000 tem muito disco foda de rap eque acabou ficando no lado b, e muita gente só depois descobriu essa parada, porque a gente ficava muito naquela coisa de Racionais, Facção, Rzo ,et. Ai veio Contrafluxo que já é depois, 4ª Estrofe …

Munhoz: É que o Renan já é outra geração, Contrafluxo já é meio que a geração intermediária na real, se você for ver nem tem tanta diferença de idade. Então assim, o Contrafluxo tinha, um rolê, quando acabou o Ascendência nada acontecia, né

Zorack: Não sei se vocês sabem ,mas o primeiro show que a gente fez foi abrindo pro SNJ, dividimos camarim com o Sabotage ,509-E, RZO, com a porra toda, velho. Foi no Clube da Cidade

Munhoz: E a gente não foi bem recebido, só pelo Sabota.

Zorack: Não foi mesmo. No dia e na hora do show eu faria um buraco no palco, eu cantei travado só faltava afundar de tão tenso e travado que eu tava..

Munhoz: E eu quase cai do palco.

Zorack: Não sei se vocês tão ligados, mas o Munhoz caia do palco sempre (risos).

Raplogia: Então, mas eu citei esses grupos pra perguntar uma parada: Como que é olhar pra trás e ver que puderam participar de um década do rap que tem uma qualidade tão foda?

Munhoz: Parece outra vida ,pra mim é isso. Eu quando olho pra trás, várias vezes eu penso que é outra vida, uma existência diferente. Só que assim, hoje em dia eu tenho umas coisas na minha vida que eu não troco, eu sou esse Tsunami que fica aqui escondido, eu nunca gostei de palco.

Zorack: Eu sempre gostei de palco. Eu não gosto de gente (risos).

Munhoz: Mas ai que tá, isso é engraçado porque é um paradoxo. Eu não gosto de palco, mas na maioria das vezes eu conseguia ser mais tranquilo, quando você subia você botava a porra do chapéu atolado e não conseguia falar uma palavra. Eu acho que o que fica dessa época nossa, mais do que qualquer coisa, é que eu tava precisando de algum veículo de expressão, tinham algumas coisas que eu precisava falar que ninguém tava falando, fosse da minha vida ou não, eu tinha que dividir alguma coisa, minha visão de mundo ,seja lá o que for. E o rap era a maneira mais imediata de fazer isso e mais fácil, não precisava nem ter três instrumentista, você precisa ter um disco, cê grava a instrumental … a gente cansou de fazer show com diskman. Era um diskman, CD com as bases, botava o play e foda-se Tinha um microfone e um diskman tava tudo certo, a gente dava um jeito.

 

Raplogia: Qual foi fator principal pro grupo não ter continuado? Ou teve a questão da grana, a questão da vida ter seguido outros caminhos?

Munhoz: Cara, gente era, basicamente, 3 desempregados. Num dado momento o Zorack vai embora do país. Aí esse trampo que eu tava na época, que foi em 2001, bolha da internet, da Nasdaq, ele caiu, todos os trampos dessa área caíram. Eu não tinha uma puta formação pra me recolocar no mercado, o Zorack trabalhava de telemarketing e o Venom era desempregado,a vida toda. Nisso o Venom começa a trabalhar com o Marcelo D2, o Primo era nosso DJ e o Primo passa a ser DJ do Marcelo D2 e leva o Venom. Eu morava sozinho, tive que voltar pra casa da minha coroa. E é isso,, além do cenário pessoal, quando se olhava o cenário em geral não se via muita esperança ,não sabia muito onde a coisa ia dar, e é isso assim o começo da era Lula. Aí um primo do Zorack tinha ido pra Australia, tava se virando …

Zerock: Minha tia, a mãe desse meu primo, emprestou uma grana e eu saí fora. Mas também só trabalhei lavando louça, não ajuntei nada e voltei devendo a grana que eu peguei emprestado. E aqui nessa volta, que monta esse cenário todo (da minha casa) que eu to agora, a condição que eu moro, foi ter entrado pra publicidade, porque é um puta conflito na minha cabeça ganhar grana e vendo mentira. Eu fiz minha carreira na publicidade, nem eu nem ele tem formação nenhuma ,tem segundo grau da escola pública, tá ligado? Só que hoje eu tenho uma empresa e eu aprendi na marra, tá ligado?

Munhoz: Na real o que aconteceu nesse período que o Zorack foi embora é eu fiquei meio perdido, e ai o Venom e eu tentamos tocar, teve aquela coletânea “Direto do Laboratório”, ela demorou muito tempo pra ser lançada, então quando teve o show de lançamento o Zorack ainda tava aqui, mas eu e o Venom decidimos que iriamos só nós dois, que a gente precisava fazer a parada sem o Zorack, a gente precisa lidar com essa situação de que você não é mais do grupo …

RaplogiaAcho que pra finalizar, vocês não tem desejo de fazer nada? Seja em grupo, sozinho o que quer que seja

Venom: Deixa eu falar primeiro que eu falei menos, eles não param de falar (risos). Bom, eu continuei trabalhando com música e os caras pararam. O Munhoz toca, tem guitarra ,tem as parada dele, o estúdio, as base dele escondida pra caralho ,trinta milhões de beats foda. Eu tenho meu home estúdio, coisa ampla, minhas paradas pra gravar, tem tudo. A gente teve várias propostas de: “ô, mano, vamo fazer um show do ascendência, vamos fazer uma música”, mas ou os caras não tem tempo, ou outro não quer, então nunca mais vai acontecer – no meu ponto de vista – mas eu Ia achar legal (risos).

Munhoz: Cara, eu não vejo voltando, eu não vejo voltando nem o Contrafluxo. E não foi por falta de tentativa, o Contrafluxo acabou em 2009, assim que saiu o “Crônicas da Cidade Cinza” acabou o grupo, cara. Se você tem um grupo e alguém sai em carreira solo,é difícil voltar o grupo. E botando a questão econômica, quem tá disposto a pagar 4 pessoas? No Contrafluxo eram 7 membros, então você vai ter que pagar pelo menos 5 vezes o que você paga num show do Ogi, quem vai pagar isso?

Zorack: Agora respondendo minha parte, o Ascendência não volta, vocês já ouviram os dois falando, mas hoje eu tô tomado pelo meu mercado de trabalho, e é o primeiro ano que minha filha tá morando comigo, só mora eu e ela. Mas vira e mexe a gente combina de tá fazendo alguma coisa,com alguém bom. Tem um som que eu vou fazer que era com o Venom e o Espião, mas os caras abandonaram, mas eu vou fazer …

Venom: Eu fiz até o beat todo de novo.

Zorack: Então pode rolar esse som ainda. Não sei se vocês conhecem o Rodonis Sujeira, tem o Lincoln de Curitiba que me chamou pra fazer um som e eu escrevi uma letra que acho que é um dos melhores versos que já escrevi na vida. Aí tem o Léo também, que é de São Miguel e me convidou pra um som.

Eu ia fazer um disco solo, um trampo solo. Eu separei 10 letras que acreditava, eu ia fazer uma pegada meio Run The Jewels, e eu troquei Ideia com o Ogi, que era meu camarada mais próximo que tava fazendo alguma coisa, e ele falou: “Chama o Cesinha, Cesinha é o cara”. Mas acabou não virando, e com minha idade, o que minha profissão exige ,com o ritmo que as coisas tomam, você perde o interesse nas coisas muito rápido, então essas dez letras eu não gravaria elas hoje porque já não me representam.

Munhoz: Eu não faço som por que eu não tenho nada pra dizer.

Zorack: Puts, eu tenho coisa pra caralho pra dizer. Já escrevi um verso hoje, escrevi o verso que eu vou gravar com o Sono. Só que ai eu coloco um porém nisso: Eu já não leio pra caralho, eu leio super pouco, se eu fizesse um disco hoje ele seria bem repetitivo, porque o problema é o mesmo que eu enxergo em tudo. Minha parada hoje é bem mais comportamental do que qualquer outra coisa, a política é explícita, é difícil você falar alguma coisa. E eu não vivendo aquilo que eu vivia, morando em Arthur Alvim, a gente correndo, indo pras festas e fazendo as paradas, fazendo show beneficente em Guarulhos, Suzano, eu enxergava coisas. Não que eu deixei de enxergar, eu deixei de conviver com isso. Então Você pode rimar com outras coisas, sobre outras coisas …

Munhoz: Rimar você pode rimar sobre qualquer coisa. Posso fazer um disco sobre o nada, sobre a minha rotina, e ,minha rotina é basicamente sobre o nada . Só que eu ando duas quadras e essas duas quadras no centro de São Paulo tem um monte de coisa, se eu resolver enxergar o que tá acontecendo nessas duas quadras e meia, eu posso fazer um disco.

Cara, eu moro num bairro onde as tensões entre uma classe média ascendente, uma classe média tradicional, e a galera da luta social são um caldeirão. Se eu quiser falar dessas pessoas, eu posso abordar de um monte de maneira. Mas eu não acho que eu tenho coisa relevante pra falar no rap, eu tenho preguiça do rap, eu tenho preguiça de palco. Eu talvez acho que pra minha sobrevivência era melhor que eu não tivesse essa preguiça de palco ,porque tem um dinheiro pra ganhar lá fora.

Ascendência Mista. Foto: Marcola/Raplogia

Ascendência Mista. Foto: Marcola/Raplogia

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.