No ano de 1970, várias mudanças aconteciam dentro da sociedade norte-americana. A luta pelos direitos civis era cada vez mais forte, e desde então, muitos artistas negros começaram a fazer ativismo através da sua arte. Entre eles, o diretor de cinema Melvin Van Peebles.
Nascido em Chicago, Melvin se juntou a Força Aérea antes de começar sua carreira no cinema. O diretor começou a trabalhar em curtas na década de 50, baseados nas suas experiências de vida.
No começo da década de 60, Van Peebles se mudou para a Europa com sua família, após um homem querer divulgar seus filmes na França. No país, após divórcio, o diretor começou a se profissionalizar e trabalhar com Henri Langlois, fundador da organização Cinémathèque Française.
Seus primeiros filmes e trabalhos como autor, foram em francês. Seu primeiro longa-metragem foi The Story of a Three-Day Pass, em francês La Permission. Esse projeto fez com que Hollywood prestasse atenção no seu trabalho, e o jovem diretor que não conseguia emprego na cidade dos anjos, em 1970, conseguiu um contrato com a Columbia Pictures para fazer o filme Watermelon Man, que contava a história de um trabalhador branco e racista que de repente acordava como um negro. O filme era estrelado pelo comediante negro Godfrey Cambridge.
A pedra fundamental do blaxploitation seria plantada ali. Watermelon Man não é considerado um filme do gênero, mas seu sucesso foi precioso para Melvin Van Peebles, que agora, tinha como explorar mercado dentro dos Estados Unidos. A Columbia ofereceu um contrato de três filmes para o diretor, devido o sucesso financeiro de Watermelon Man. Porém, as diferenças criativas que aconteceram dentro desse projeto, o fizeram recusar o contrato. E seu próximo filme, é até hoje, considerado um marco e um dos primeiros filmes de blaxploitation da história, trata-se de Sweet Sweetback’s Baadasssss Song. Esse projeto foi produzido com dinheiro do próprio Van Peebles – Bill Cosby chegou a empresar 50 mil dólares para o projeto – e foi distribuído pelo Cinemation Industries, estúdio que ajudou na distribuição de vários outros filmes de blaxploitation.
Mas o que é blaxploitation?
Hollywood está sempre buscando formas de fazer dinheiro e entreter os espectadores. Dessa forma, o cinema produz tanto como obras grandiosas, artísticas e de grande orçamento, quanto também obras mais nichadas, com baixo orçamento e com conteúdo apelativo. Assim nasceu o gênero exploitation, que teve um grande hype entre o final da década de 60 até o final da década de 80, com elementos que duram até hoje.
Dentro do gênero exploitation, existem vários subgêneros, entre eles o blaxploitation, mais voltado para a audiência urbana e afro-americana. Dentro dele, diversos estereótipos raciais, como também grandes heróis do cinema negro foram retratados.
O sucesso comercial e financeiro do blaxploitation ajudou a alavancar a carreira de diversos artistas, como Richard Roundtree, Ron Ayers, Pam Grier, Fred Williamson, entre outros. Mas a grande mina de ouro dos filmes foram suas trilhas sonoras, produzidas por lendários artistas do soul, funk e R&B.
Junto com Sweet Sweetback’s Baadasssss Song de Melvin Van Peebles, outro filme foi creditado como um dos primeiros filmes de blaxploitation da história, Shaft, também de 1971. Dirigido pelo icônico fotógrafo Gordon Parks – cuja o trabalho inspira o hip-hop até hoje -, o filme teve sua trilha sonora feita por ninguém menos do que Isaac Hayes, um dos maiores artistas da época.
“Theme from Shaft” ganhou um Oscar de Melhor Música Original, tornando Hayes o primeiro negro a ganhar o prêmio. A música se tornou lendária. Seus elementos foram usados por diversos rappers durante a história, como Big Daddy Kane, Jay-Z, Ja Rule, Public Enemy, N.W.A., LL Cool J, e o Wu-Tang Clan.
Shaft e Sweet Sweetback’s Baadasssss Song são datados de 1971, fazendo do ano o pilar fundamental do blaxploitation. Em 1972, a febre começou com filmes como Hit Man, Super Fly, The Legend of Nigger Charley, Hammer, Across 110th Street, Black Mama White Mama, Blacula e Trouble Man.
O fato do blaxploitation ter se tornado popular, fez dele uma espécie de movimento. No ano de 1972, acabamos por observar obras mais profundas e que não apenas tratavam-se de filmes de crime. O gênero começava a dar passos maiores, e filmes como Blacula, um filme de terror, e The Legend of Nigger Charley, um faroeste, emplacaram esse significado na indústria e tornaram o blaxploitation muito maior que um subgênero.
Em 1973, no primeiro filme de Roger Moore como o espião 007, Live and Let Die, o blaxploitation foi usado como grande inspiração para construção da trama, ambientação e personagens. Bastantes clichês do gênero também foram incorporados no filme, que ajudou bastante a popularização do blaxploitation no mainstream,
A importância das trilhas sonoras
Quando Sweet Sweetback’s Baadasssss Song e Shaft foram lançados em 1971, um padrão foi proposto com as trilhas sonoras de ambos os filmes: elas foram trilhas feitas por um único artista, e um artista de qualidade.
Enquanto muitos dos filmes de hoje tem compositores específicos do ramo para suas trilhas sonoras, o blaxploitation começou a trabalhar uma linha que pôde ser vista até em 2018, com Kendrick Lamar sendo o curador da trilha sonora de Pantera Negra.
Grande maioria dos filmes do gênero, tinham grandes artistas por trás das trilhas sonoras. Quando Isaac Hayes levou o Oscar de Melhor Música Original, outros filmes começaram a usar da mesma técnica: chamar artistas conhecidos para cuidarem da sua música.
Em 1972, o filme Trouble Man trouxe Robert Hooks para viver Mr. T, uma espécie de “resolvedor de problemas” que vivia em South Central, na cidade de Los Angeles. Para a trilha sonora, ninguém menos do que Marvin Gaye foi encarregado de dar vida a música do filme.
O disco Trouble Man fez parte da discografia de Marvin Gaye, sendo um ponto importante de evolução na sua trajetória. Nesse trabalho, algumas das músicas foram extremamente usadas dentro do cenário hip-hop anos depois, “Poor Abbey Walsh” por exemplo, foi sampleada por diversos artistas, incluindo o grupo Racionais MC’s na música “Tô Ouvindo Alguém Me Chamar”:
Naquele ano de 1972, dezenas de outros filmes do gênero foram lançados. Um deles foi Across 110th Street, estrelado por Anthony Quinn e Yaphet Kotto, o filme contou com a trilha sonora feita por Bobby Womach. A música título do filme atingiu o número 19 na Billboard – a música foi reutilizada em um filme de Quentin Tarantino que homenageou o gênero, Jackie Brown.
A música “Across 110th Street” foi sampleada mais de 30 vezes, muitas delas na última década por nomes como Big K.R.I.T. e Raekwon.
Super Fly foi mais um filme daquele grande ano. Além de uma trama bastante interessante, ele nos trouxe também a trilha sonora feita por Curtis Mayfield, que talvez, tenha sido até hoje uma das trilhas mais sampleadas do hip-hop.
Entre décadas e artistas, Curtis Mayfield foi extremamente lembrado pelo seu trabalho. A trilha sonora é só mais um dos registros que Curtis teve samples. Desde Ice-T, o uso de músicas do filme é bastante comum. “Give Me Your Love (Love Song)“, “Pusherman” e “Superfly” foram as mais usadas, segundo o WhoSampled.
A relação com as personas
Se uma coisa que os filmes de blaxploitation souberam criar, foram os personagens. É bastante raro você ver um filme do gênero sem se sentir extremamente fascinado por um dos personagens da trama.
O conceito de anti-herói é bastante antigo, mas dentro dos blaxploitation podemos ver grandes exemplos de personagens dessa forma. Muitos heróis da comunidade usavam de meios nada legais para conseguir vingança, atingir seus objetivos, ou simplesmente proteger sua comunidade.
Esses exemplos são grandes pontos de tramas de filmes como Super Fly (1972) e Slaughter (1972), onde alguns dos mais icônicos personagens do blaxploitation são retratados como anti-heróis.
Muitas dessas personas e estilos foram incorporados no futuro hip-hop, junto aos nomes de personagens, que foram usados como alcunhas de grandes nomes do hip-hop. Alguns trejeitos e formas de contar histórias com a música também eram bastante semelhantes aos filmes de blaxploitation.
Por exemplo, os discos Twelve Reasons to Die de Ghostface Killah com Adrian Younge, tem bastante desse sentimento setentista, tanto na história quanto na musicalidade. A influência que o rapper bebeu é diretamente vinda dos grandes blaxploitation.
A semelhança entre Youngblood Priest e algumas das fases de Snoop Dogg também é bastante lembrada quando falamos de inspiração direta do blaxploitation. Muita da persona construída por Snoop ao longo dos anos vem desses filmes – ele até fez um personagem que refletia bastante o gênero no filme “Starsky & Hutch”.
Em 2018, tivemos a chance de assistir uma das poucas refilmagens de filmes de blaxploitation. Super Fly foi refilmado, e dessa vez quem cuidou da trilha sonora, foi o rapper Future. O gênero decaiu e praticamente morreu no fim dos anos 70, mas às vezes somos reapresentados à como o blaxploitation foi importante, e essas roupagens atuais mostram bem como seria se o buzz desse gênero acontecesse em pleno século 21: provavelmente teríamos muito hip-hop na trilha sonora e também envolvido na trama.
Mesmo tendo nascido antes da cultura hip-hop, pode-se dizer que o blaxploitation foi um grande fator importante para o desenvolvimento da cultura e principalmente do Rap.