Hoje, o Raplogia inaugura um novo espaço editorial, que será dedicado a abordar os demais elementos que compõem nosso amado hip-hop. Estreando em grande estilo, convidamos o artista Griô – grafiteiro, ilustrador e grande fã de Emicida e Jay-Z – para um bate-papo sobre sua arte, que salta aos olhos por tamanha qualidade, originalidade e beleza.
Ilustre morador da Vila Brasilândia (São Paulo) e desenhista desde novo, o graffiti foi sua primeira forma de manifestação artística. Sem uma assinatura, tão importante para o movimento, encontrou em “Cory” – seu apelido de infância – uma maneira de se expressar sem chamar a atenção. Mas, sentindo a necessidade de adotar um nome com o qual tivesse mais identificação, surgiu “Griô”. O apelido vem dos “Griots”, pessoas que, na África Ocidental, têm por vocação transmitir histórias, mitos, conhecimentos, canções e toda forma de cultura de seu povo.
(Fonte: Descolonizarte)
Dadas as devidas apresentações, vamos ao bate-papo que tivemos sobre rap, arte, negritude, favela e tudo o mais que permeia o universo desse mensageiro.
Como é o seu processo criativo e técnico para as ilustrações?
Mano, desenhar, assim como qualquer outro tipo de arte, precisa de um vocabulário grande. Você precisa ter feito muita coisa, ter muita bagagem. Eu sempre copiei as coisas que eu gostava, sejam animações, quadrinhos, etc.. Ao longo da vida, eu adquiri um repertório imagético, então, quando eu começo a desenhar, eu lembro de várias coisas que eu gosto.
O meu processo surge de referências. Eu gosto muito de cor, tá ligado? Tudo que eu vejo com uma cor forte e contrastante me interessa, e aí eu começo a repensar essas referências em um outro estilo. A partir disso, eu vou buscar nas ferramentas que eu tenho como eu posso chegar no resultado que eu quero. A fase principal, pra mim, é o rascunho, sabe? Fico rascunhando até que eu chegue no ideal, e então eu começo a testar a ideia que tive desde o começo.
A minha prática depende do meu momento, das pessoas que estou andando, o tipo de ilustração que eu faço… Tudo isso influencia minhas referências e, consequentemente, como vai sair meu trabalho.
Como o rap o auxilia nesses momentos de criatividade?
O rap, até tempos atrás, era responsável por 90% das minhas produções. Foi a minha primeira descoberta artística. Até então, todas as referências que eu tinha de música ou de arte vinham dos meus pais, e eles não gostavam de rap.
Lembro que um dia minha mãe chegou em casa com um CD do Dexter, gravado na cadeia. Ela me deu como se fosse algo muito ruim, tipo “os meninos me indicaram, ouve aí, mas cuidado, tem uns criminosos nessa parada” (risos). Então, eu acho que isso me conduziu pra tudo, tá ligado? Por exemplo, o meu primeiro contato com a arte visual foi o graffiti, então, o rap – dentro desse movimento – começou a me levar para as outras coisas. Comecei a ouvir muito rap, conheci um projeto chamado “Sampa Graffiti”, uma parada bem hip-hop mesmo. E eu era apaixonado por essa parada, foi o que me deu vontade de começar a pintar mesmo.
Concluindo, o rap é o que me faz levantar e ter vontade de fazer as coisas. Aqui, na periferia, você pode estar na merda, mas aí você ouve um rap altruísta e fica “caralho…”. É o motivo pra eu amar o Emicida, tá ligado?
Você tem um grande apreço pela sua quebrada – a Vila Brasilândia. Mesmo sendo um dos bairros mais perigosos da cidade de São Paulo, percebo que você não segue essa influência no seu trabalho. Como foi se desvencilhar desses detalhes e estereótipos na sua criação e personalidade?
Cara, acho que essa visão colocada pelas pessoas e pela mídia não é nossa, tá ligado? O que eu sempre falo é que o que me motiva é a necessidade de me expressar e, mesmo sem ganhar um real, eu vou continuar fazendo isso. Eu preciso contar essa história, que é minha, e que eu vejo muita gente contando, mas de maneira distorcida.
Essa pergunta que você me fez me trouxe para um ponto. Essa visão marginalizada, os estereótipos, eles são de quem não vive na periferia. Então, tudo o que eu tento fazer aqui é falar como é a vivência dentro da minha quebrada, decodificando alguns traços, para que uma galera que não é daqui possa entender, sabe? Eu acho que essa questão é complexa. Não existe só a criminalidade, mas também outros problemas. O que eu vivo na favela é um ciclo vicioso, o que eu vivia há 10 anos ainda acontece.
Do meu ponto de vista, eu tento realmente fazer uma releitura de tudo isso que eu vivo. Por exemplo, eu tô fazendo uma série de pinturas falando da Brasilândia e eu pensei que seria muito fácil e rápido, sabe? Mas é uma série que me toca muito e é muito difícil de produzir porque ela realmente fala da minha vida. E nessa série eu tento mostrar o meu cotidiano, começando por “Restaurantes, bares e motéis” – referência a uma rima do Rincon Sapiência – tratando desses aspectos e locais do bairro.
Em qual momento você decidiu tornar o rap como parte da sua arte?
Mano, acho que isso vem de uma questão da construção da imagem deles [dos MC´s]. Eu fui acompanhando o rap e chegou uma hora que eu comecei a me interessar pelo estudo do rap, entendendo tudo que havia por trás dos discos, MC’s e artistas no geral. E, querendo ou não, isso tem a ver com a arte. Às vezes, eu vejo uma capa de disco e me sinto inspirado, como a arte que fiz do Illa J, por exemplo. Eu vi a capa, notei que tinha uma luz de fundo, que não era uma luz muito incidente, e me deu vontade de desenhar aquilo. Então, muitas vezes, minhas ilustrações surgem de um disco, um verso, uma frase ou uma música que eu fico ouvindo no repeat e nasce esse desejo de ilustrar.
A zona norte de São Paulo é celeiro de gente como Kamau, Emicida, ZN Lovers e uma infinidade de artistas ligados aos elementos do hip-hop. Qual a influência dessa rapaziada no seu trabalho?
Eu acho que, em São Paulo, a Brasilândia é o local mais foda no graffiti, o que não significa que, em outros lugares, não existam artistas talentosos. Mas muitos desses grandes artistas vieram da Brasilândia. Quando eu vou para grandes eventos de graffiti, consigo ver o respeito que meu bairro tem no movimento. Um exemplo é o Smoke, grafiteiro que hoje mora no Canadá e é muito conhecido.
Então, essas referências nos fazem acreditar que é possível, sabe? Cada vez que eu conheço mais pessoas que saem daqui e que deram certo, eu fico ainda mais motivado. Eu acho que a minha introdução à cultura do hip-hop foi através dos eventos de graffiti, porque é um espaço onde existe uma coletividade, principalmente quando acontecem na periferia.
Antes eu me via muito nessas pessoas mas, a partir do momento em que comecei a criar a minha própria identidade artística, comecei a me desvencilhar desses artistas e virando uma coisa própria. Hoje eu vejo que já sou referência para algumas pessoas que estão começando, e eu acho esse ciclo muito bonito, me sinto muito feliz.
Então, pra mim, o hip-hop é esse ciclo de construção de identidade e compartilhamento. Os Racionais foram referência para o Kamau, o Kamau foi referência para o Emicida e assim vai.
Ainda sobre o Emicida e Jay Z, é nítida a sua admiração pelos artistas, como pude ver em suas redes sociais. Sendo de origens tão próximas e com histórias tão semelhantes, o que você vê em comum na arte dos dois?
Eu acho lindo como a arte deles é autobiográfica, porque a galera cobra muito do artista para que ele seja perfeito, como se eles não pudessem fazer nada de errado. Mas eles são pessoas, cometem erros, e você tem que saber separar o artista da arte, saber o que esse artista, enquanto pessoa, tem feito para melhorar.
No primeiro álbum do Jay-Z, ele se retratava como um grande cafetão, e dois discos depois ele lançou uma faixa que diz algo como “Lágrimas não saem mais dos meus olhos, então, eu vou fazer a canção chorar”. Então, você percebe que ele está fazendo uma autocrítica, repensando a forma como viveu. Já no último disco, ele aborda a traição [em relação a Beyoncé], o fato da mãe dele ser lésbica, e eu amo isso, eu amo como ele foi vivendo, aprendendo e transcrevendo essa trajetória.
Quanto ao Emicida, eu acho que a forma como ele é autônomo, e a sua autoestima são coisas que inspiram o meu trabalho.
As suas ilustrações vão desde a era de ouro do hip-hop – retratando gente como Snoop Dogg e 2Pac –, passando por MF DOOM, até Kendrick Lamar e Tyler The Creator, sempre com a preocupação de retratar artistas negros. O que você tem escutado, e qual é o seu critério para retratar um artista?
Normalmente o critério é quando eu consumo algo de algum artista e essa informação fica na minha cabeça, sabe? Então, é sempre sobre isso, sobre algo que não sai da minha cabeça a ponto de virar uma ilustração.
Por exemplo, quando o Illa J lançou um dos seus últimos trabalhos, eu fiquei viciado, ao ponto de ter que ilustrá-lo. Então, são sempre pessoas que eu já estou pesquisando. precisa haver um apego emocional.
Eu me inspiro muito em gente que ilustra a pele negra e que conta essa história. As pessoas ao meu redor são todas retintas, a minha família inteira. É uma forma de reproduzir eu mesmo e o meu entorno.
Você pretende, em algum momento, viver da sua arte ligada ao rap? Quais são suas aspirações para o futuro?
Essa é a pergunta mais difícil de todas. Essa quarentena tem feito eu pensar muito sobre o fato de que, nós que somos da quebrada, temos tendência a querer vender o nosso talento o mais rápido possível. Por exemplo, você faz um hot-dog foda, ninguém faz um igual ao seu. E a primeira coisa que você vai pensar, morando na periferia, é “vou montar um carrinho de hot-dog”; e não estudar gastronomia. A gente não está acostumado a pensar que o estudo vai nos levar a algum lugar.
Pensando nisso, meu maior objetivo é estudar. Por mais que eu trabalhe muito, isso não me dá a liberdade de criação. O que me dá liberdade é dinheiro. E eu preciso pagar minha carta de alforria, sair desse lugar, sabe? Eu preciso me ver em outros lugares e pra isso eu preciso de dinheiro. Então, a minha meta é estudar cada vez mais, pra que meu trabalho siga cada vez mais autêntico, e começar a fazer a minha grana só com isso.
A ilustração – que não deixa de ser uma evolução natural do graffiti nascido em NY – tem sido cada vez menos valorizada no movimento, assim como o breakdance, que perde cada vez mais espaço para a cultura do rap e do MC. Como você enxerga isso? O que podemos fazer, enquanto parte do hip-hop, para mudar esse cenário?
Acredito que toda nova linguagem venha para agregar, mas eu acho que nós precisamos manter a cultura. É isso o que eu tento fazer. Eu não quero me limitar a buscar somente coisas novas. Eu acho que o rap está se destacando porque ele está mudando, acho que ele tá chegando em outro patamar, o que o faz se afastar dos demais elementos.
O que eu tento fazer – e acho que as pessoas deveriam também – é manter as bases da cultura. Eu vejo grafiteiro assinando o muro com nome e sobrenome, e isso tá errado. As pessoas usavam outro nome para que não descobrissem quem estava assinando, isso é cultura. Ninguém tá julgando o que você pode ou não fazer, mas a meta é que a gente ganhe com esse trabalho.
Com quais artistas do rap – nacional e internacional – você gostaria de trabalhar?
Eu queria muito trabalhar com alguns produtores que eu gosto. O Skeeter é um deles. O Nave é outro produtor foda. E, claro, o Kamau. Falando de artistas de fora, eu trabalharia com o Madlib, eu gosto muito desse cara.
Claro que eu gostaria muito de fazer algumas coisas para a Laboratório Fantasma, mas acho que eu teria que fazer algo que não fosse tão a minha cara.
Para conhecer mais do trabalho do Griô, corre lá no Instagram dele.