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O legado de Gil Metralha

By 21 de outubro de 2017 No Comments

Falar de Gil Metralha é falar sobre a história da nova (e quase) velha escola do underground carioca. Rimador nato, integrante do grupo Firma Brasileira, foi um dos maiores nomes do freestyle, o que lhe deu o título da Liga dos MCs em 2004. Perdemos o Gil no final do ano passado, e, na semana passada, com a confirmação da morte vindo a tona, muitas pessoas do convívio do Gil prestaram homenagem na internet, por meio de fotos, posts e comentários no YouTube.

Mas, antes de falarmos do fim da jornada, é necessário falar sobre seu legado.

Gil, durante a Liga dos MCs 2004, onde foi campeão.

Nascido Rio de Janeiro de berço, Gil sempre foi diferenciado pela sua lírica e pelo flow característico, a malandragem carioca estampada no sotaque e na forma de encaixar as palavras na sua levada.

Lançado no começo dos anos 2000, o disco do Firma Brasileira não teve muita repercussão fora do cenário underground, numa época onde o RAP ainda não tinha alcançado o mainstrem com tanta força. Porém, quem vive no meio obscuro da cena reconhece a importância do trabalho, feito em parceria com Sheep, Coé e produzido por Dino T-Rex, trabalho esse que retrata tão bem o que era a vivência de rua no RJ, as roda de rima e de fumaça, o corre independente, a fé e os amigos. Foi um grande registro ocular da vida na rua.

Antes de ser visto no Firma Brasileira, Gil já vivia o RAP nas andanças do Rio de Janeiro, nas rodas de batalha, com os amigos de longa data do Cachaça Crew, os MCs já citados e muitos outros conhecidos rappers da cena carioca, como Shawlin e Bocão. No grupo RAPpress foi onde Gil começou, de fato a caminhada. Depois disso juntou com os parceiros para a formação do FB.

Firma Brasileira – Luz, no seu único projeto lançado.

Como muitos sempre diziam, era um dos melhores no Freestyle e um dos maiores campeões nas Batalhas de MC no Rio de Janeiro. Foi Campeão da Liga dos MCs em 2004. Em, 2006, contra Emicida, numa das maiores batalhas já vista, ficou com o vice-campeonato.

Final da Liga dos MCs 2006, Emicida campeão, vencendo Gil.

Sempre atento a cena e a correria, Gil continuou seu legado ainda participando das batalhas, e lançando vários singles, alguns deles com participação de Papatinho, ConeCrew, Shawlin, entre outros MCs da nova escola. Em 2011, lançou o disco “Máfia Latina”, bem aclamado pelo público da cena underground.

Dos tempos aureos até sua morte, em 2017, Gil se manteve como grande referência do RAP de seu estado, bem como do Brasil, e também manteve projetos paralelos baseados na cultura Hip-Hop no bairro onde morava.

Gil e Marechal, 2016

Muito tem se falado nos últimos dias sobre a causa mortis do MC, sem que alguém pudesse nos trazer uma luz acerca dos fatos e do que levou o MC ao final tão precipitado. Conseguimos um relato de um dos maiores amigos do Gil, T-Rex, e vocês podem conferir na integra a entrevista que o Victor obteve com o produtor:

 

“O Gil foi enterrado como indigente, e ele não foi atropelado, mano. Apesar de dizerem que foi essa a causa da morte eu tenho indícios e histórias que me levam  a crer que não foi essa a causa.

Conheço o Gil desde 2003, junto do Bocão, Sheep, Zé Bolinho e essa galera da praça  seca. Nessa época já existia o “RAPress”, e eles tinham um grupo chamado “Maus elementos”.

Quando conheci o Gil, eu tava no começo é o RAPress já tinha um disco na rua. Isso foi em 2004, ano em que o Gil venceu a Liga dos MCs, e estavam indo pro segundo disco.

Desde que conheci o Gil, eu vi que o cara era bizarro no freestyle, ele era absurdo. Se não fosse no psicológico, você não ganhava dele. Naquela época o nível era muito superior, a gente não entendia tanto das técnicas quanto a molecada de hoje em dia, mas o aprendizado da rua e vivência daquela época era bizarro. Todos os MCs tinham identidade própria, e o Gil fazia um flow pausado, era foda. Eu já vi o Gil rimar 1h sem parar, sem falar ‘namoral’, ‘ta ligado’, ele tinha rimas boas demais e fazia geral rir.

Quando nos conhecemos ele ia gravar lá em casa, inclusive, o disco do Firma Brasileira foi todo produzido por mim.  Os caras na época queriam levantar uma grana e fizeram o disco. Eram Gil, Sheep e Coé no FB.

O Gil era um cara de muito talento, mas o que as pessoas nao sabem era dos problemas pessoais dele. O Gil tinha epilepsia, ele tomava uns remédidos fortes, tá ligado? Nego falava que ele era maluco, bipolar, mas na verdade o cara tomava remédio, tinha uma vida foda, morava com a mãe na favela da Chacrinha. Ele sempre foi reprimido nessa parada toda e acabou indo pra um caminho muito errado de favela, de droga, de crime e tal. Nossa geração não formou vários milionários por causa do nosso momento, o momento do RAP não era propício.

O Gil foi o cara no momento errado, o beleza foi um cara muito bom e respeitado nas batalhas, mas no freestyle eu nunca vi ninguém rimar melhor que o Gil.

Mas, voltado a morte dele, pelo que fiquei sabendo, teve a obra do BRT e a mãe do Gil ganhou um dinheiro lá na casa do Chacrinha. O Gil pegou um dinheiro e foi morar na Estrada do Pontal, numa casa lá. Parece que lá ele arrumou briga com um vizinho por causa de um pedaço de terreno. 

Num dia ele tava meio doidão, invadiu a casa do vizinho e deu umas porrada no cara, tá ligado? Pegou umas parada lá. O Gil tinha umas fase maluca, ele era uma pessoa complicada, tá ligado?

 Aí tinha uns cara lá e expulsaram ele dá casa dele, mandaram embora. De lá ele foi pra Barão e caiu no crime de vez, tá ligado? Aí parece que nisso, um dos caras que expulsaram ele brotou na Barão e mataram o cara, e caiu na conta do Gil, mesmo sem saberem se foi ele que matou.

Com isso, ele precisou sair do morro, pois ficou procurado por geral, porque babou o morro, sabe qual é? Dai então ele sumiu.

Eu acho muito difícil um cara sendo procurado por geral ter sido atropelado. SE você não deixa falha já é morto, imagina se deixar. Então eu desconfio que ele tenha sido assassinado e enterrado como indigente.

Quero deixar claro que tudo isso são boatos que eu ouvi de outras pessoas e não é nenhuma certeza. São fatos que eu ouvi e o que eu ouvi é que ele foi assassinado e enterrado como indigente. Então, tipo assim, mediante essas histórias que me contaram, não, eu não acho que ele tenha sido atropelado, e sim, deram um sumiço nele.

Mas, mano, nos perdemos o melhor que nóis tinha, tá ligado? Naquela época, não tinha essa de xingar a mãe, a namorada, falar que era foda, a platéia te vaiava, tá ligado? Era batalha com ética, era coisa séria. E essa galera de hoje não vivei a real fundamentação das batalhas, da ética do bagulho. Tinha MC que não batalhava com o Gil e o Sheep, mano! O único que batalhava com todos era o Loco.

A galera de JPA não batalhava entre sim mano. A galera la lapa tinha o Funkero, RET, Nissin, mas eles não eram da mesma galera, então eles batalhava entre si, e não tinha essa de não batalhar entre si. Mas JPA era unido demais, e a  gente dominava a batalha da época. A gente dominou o RAP de batalha. A gente foi campeão dois anos seguidos da Liga, com o Gil e Beleza. E no outro ano, se não me engano, foi aquela batalha com o Emicida, que foi polêmico, e eu acho que o Gil merecia ter vencido. Eu achei que o Gil não ganhou ali porque a galera que não era de JPA era contra JPA. O Emicida rimava pra caralho, mas era pra ter ido pro 3º, mas a galera não gostava de JPA e acho que rolou uma parcialidade ali.

O Gil era um cara polêmico demais. A galera se respeitava, mas era inimigo, mano! O nome do grupo que inventei que era o UnirVersos, pregava união e não me arrependo. Hoje em dia sou parceiro pra caralho do Funkero, do Aori, troco ideia com eles direto. Mas o Gil era um cara polêmico mano, e acho que isso influenciou.

E mano, eu produzi coisa pra caralho pro Gil e ele vacilou muito comigo e com muita gente, tá ligado? Porra, não vou ficar aqui falando e nem julgando ninguém, ele tinha uma vida complicada, um psicológico complicado, porque o maluco era muito talentoso e admirado pelas pessoas, mas, ao mesmo tempo, ele era frustrado porque aquilo nao rendia pra ele o que ele merecia. Ele foi o foda do momento, e se fosse hoje aquele momento, o Gil ia ser o maior MC do Brasil. O que tá rolando com o Xamã teria acontecido com o Gil fácil. O Xamã é um MC excelente, mas estamos em 2017, eu to falando de Gil em 2003, 2004, lek! Naquela época ele já fazia umas rima bizarra, num estilo irreverente mas muito sério, ele tinha muito conteúdo.

Minha relação com ele nos últimos tempos era complicada, a gente quase não se falava. Na época ele brigou com outro parceiro, saiu na porrada, mas mano, ninguém é perfeito. E ele não tá sendo lembrado pelas pessoas do que ele era como pessoa e sim como artista. Tô 17 anos nessa e pra mim ele foi o maior, disparado, ele te divertia demais. E eu prefiro lembrar dele assim. Mas ele foi mais vacilão com ele mesmo, ele levou a vida para um caminho sem volta, mano.

Agora, sobre o Firma Brasileira, a gente da época do JPA Clã e depois do VU, a gente se dividiu em sub-grupos.

O Gil e o Sheep andava junto o tempo todo, nesses bonde tava mó galera, Flora Matos, ela tava começando a rimar, namorava um moleque lá que era o Índio, que rimava pra caralho, e ela andava com a gente nos rolês pela Lapa. Ela tinha que entrar com meu RG, ela tinha 16 anos, mano! Então, tipo assim. mas o Gil foi professor dessa galera toda, ele rimando e a gente aprendendo. E foi assim que surgiu o Firma, mano, foi nessa época ai.

O que tenho pra falar do Gil era que ele era um cara cheio de incerteza, e isso fazia ele ser influenciado pelas ideias de outras pessoas, e acabava fazendo merda, ele era meio impulsivo e acabava fazendo merda.

E mano, ele era engraçado demais, tanto que uma fita que um mano devia um dinheiro pra ele, e ele ligou ameaçando o mano, e a gente gravou e ria demais, mano, ria demais. Foi muita história, muito perrengue, muito RAP, muita vivência. O Gil era um cara que não se abria demais, quando ele tava com a gente era só palhaçada, mano. Ele era um cara muito engraçado.”

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Todo e qualquer artista que tenha feito a sua parte pela cultura de rua merece ser lembrado, seja em forma de legado ou homenagens. O Raplogia deixa a sua, e, para quem não conhece ou para quem deseja relembrar do legado do Gil, deixamos uma playlist com algumas das faixas do artista.

Gil, luz!

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.