Existe um ditado Iorubá que diz, “Kosi éwè, kosi òrìsà”, que significa, “sem folha, sem órixa“. Isso mostra a importância das plantas para os cultos ancestrais africano. Podemos trazer esse ditado para a música, e teremos a dimensão do que James Brown representa para o hip-hop.

Nascido James Joseph Brown Jr, é o artista mais influente artista americano do século 20, e compõe o panteão dos Deuses da música negra mundial. De ascendência asiática e africana, e com apenas cinco anos de idade, foi morar com sua tia Honey em Augusta, na Geórgia. Brown procurou qualquer emprego que pudesse encontrar: limpar sapatos, colher algodão e vender carvão. Aos 12 anos, ele foi demitido da escola por não tinha roupas suficiente para ir as aulas. Décadas depois, já como o astro da música negra, vendeu mais de 100 milhões de discos em vida, criou o funk e influenciou gente como Michael Jackson, Prince e uma legião de artistas. Pra além disso, ajudou a dar forma à ritmos como  AfrobeatJuju, Mbalax e  go-go. Só essa pequena parte do currículo de James é capaz de mostrar a força da sua música, mas, pouco se fala em como seria o hip-hop sem a existência do funk e de James: Talvez nem existisse, ao menos não da maneira como o conhecemos. 

A única coisa que pode resolver a maioria dos nossos problemas é dançar

(James Brown)

Da lavoura ao funk

É sabido que, praticamente toda a musicalidade ocidental tem origem com o tráfico negreiro para as Américas, o que trouxe, também, toda a rica cultura africana.

Na época da escravidão, os negros desenvolveram, em solo americano, um estilo musical chamado “Spirituals”. Esse ritmo, também conhecido como “cantos religiosos”, teve origem em África, seguindo uma linha onde os pais passavam os ensinamentos para os filhos, mantendo viva a tradição.

Spiritual dos Afro-americanos começou a surgir durante os anos da escravidão, que podem ir até bem antes da Revolução americana, de 1776.  Mas foi só por volta de 1860 que a música começou a ser publicada, sendo também neste ano que vários estados emanciparam a escravidão. Apesar de ter uma conotação religiosa, registros mostram que essa música tinha, acima de tudo, uma função politica, buscando o fim da escravidão. Algumas dessas canções traziam códigos e expressões, dadas por abolicionistas ou negros já libertos, de como os escravos poderiam achar caminhos para a fuga e meio de localiza-las. Essas canções eram cantadas, também, nas lavouras de algodão, com uso de palmas e acompanhamento rítmico dos corpos negros aprisionados.

Dessa tradição surgiu o Blues, um dos primeiros ritmos musicais criados pelos negros na diáspora americana. E foi da junção entre Blues, Jazz, Soul e R&B que nasceu o funk, originado das mãos e mente de James Brown. O funk surgiu na década de 60, com o objetivo de criar uma nova forma rítmica as tradições afro-americanas, tirando a ênfase da melodia e da harmonia e trazendo um groove rítmico forte de baixo elétrico e bateria no fundo, usando os mesmos acordes  encontrados no bebop.

Muito se fala sobre qual seria a primeira canção funk. gravada. Alguns atribuem a Dave Bartholomew e Professor Longhair, Lee Morgan ou até mesmo Art Blakey & the Jazz Messengers. O fato é que, em maio de 1967, James Brown lançou o single “Cold Sweet”, reconhecida como, de fato, a primeira canção funk. Foi nela em que James inseriu o estilo de bateria chamado “Drum Break”, marca registrada da sua criação. A música foi número 1 da parada R&B e alcançou o número 7 da parada Pop Singles.

O que veio depois disso é a própria história do funk sendo escrita também da música negra, pelas mãos de James. Não a toa, o artista ganhou a alcunha de “The Hardest Working Man in Show Business”, pela quantidade de discos lançados, a perfeição com que conduzia seus shows e gravações e toda a contribuição que deu para a música. Faixas como “Sex Machine”, “The Payback”, “Get Up Offa That Thing” e várias outras venderam milhões e milhões de cópias pelo mundo, influenciando diretamente uma infinidade de artistas e também o hip=hop como um todo. Tantas são as realizações de James na música que fica difícil listarmos aqui.

Há algo que você precisa entender. James Brown não foi montado em um estúdio por um produtor, como a maioria desses grupos que estão por aí hoje. James Brown nasceu de uma necessidade – a necessidade de sobreviver. Ele não começou a dançar porque gostava de dançar, ele fez isso para ganhar moedas de dez centavos dos soldados. Quero dizer, foi o que esse garoto fez. Ele veio do nada. (Louis Lo Moscolo)

“De James Brown a Sabotage”

Essa citação foi feita por Filipe Ret, em sua faixa “DUTUMOB”, que, não coincidentemente, usa um sample de James Brown. É só o começo da história de como James não só influenciou o rap, como também é um dos responsáveis diretos do surgimento e estabelecimento do hip-hop nos Estados Unidos.

Dito isto, vamos analisar como James Brown apadrinhou, direta ou indiretamente, o nosso amado hip-hop.

Ritmo e flow

O Funk tem uma assinatura de tempo de 4/4, isto é, existem quatro batidas em cada barra de uma música. Não vou me aprofundar no tema da teoria musical, mas é importante saber que este é, também, o tipo de compasso usado no rap, em especial o sub-gênero boombap.

Um dos principais ajustes musicais que Brown fez em sua música para acomodar sua nova visão rítmica – e que se tornou uma das peculiaridades definidoras do funk – foi colocar uma ênfase esmagadora na primeira batida do compasso. Você pode ouvir isso em Papa’s Bag, e Brown treinava sua banda para entrar nesse ritmo com o famoso comando “on the one!”

Em termos de composição, o que Brown fez foi mudar os ritmos de reprodução do compasso 12/8 para 4/4.” – “Dance moves: James Brown’s single-handed invention of funk”, TheLong+Short

O hip-hop, quando surgiu, se parecia e muito com a disco music, afinal, ainda não tinhamos as baterias que temos nos dias atuais,e o funk foi de extrema importância para que o rap pudesse chegar as suas bases atuais de criação. É fácil perceber como a bateria de ambos estilos musicais se assemelham, com uso do baixo como uma forma de percussão, e os instrumentos propriamente de percussão sendo responsáveis pela marcação das batidas em que os MCs rimaram seus maiores clássicos. James Brown passou 10 anos aperfeiçoando sua criação, e entendeu que cada instrumento da sua banda deveria ser uma forma de percussão, e isso explica porque o baixo do funk tem tanto swing e gingado – e o porque balançamos a cabeça ao ouvirmos rap. A faixa “Funky Drummer” serviu como base para clássicos de Nas Dr. Dre, Public Enemy e quase todo o movimento hip-hop nos anos 90.  O disco “Get On The Good Foot” lançado em 1970 é, muitas vezes, creditado como uma forma de hip-hop.

Mas, certamente, a maior evidência de que James é a grande gênese do hip-hop pode ser explicada pelo G-Funk. O Gangsta Funk, som originário de Los Angeles, costa oeste americana, foi criado sobre a grande influência da banda Parliament/Funkadelic, herdeiros diretos da obra de James. O ritmo, que ganhou o nome por Laylaw, da Lawhouse Production, teve origem nos samples de P-Funk usados pelo próprio Laylaw, usando mais sintetizadores e menos instrumentação ao vivo. Isso tudo tornou o Gangsta Funk um ritmo extremamente dançante, swingado, com os baixos ditando o balanço do estilo, ainda que, sobre suas bases, houvessem membros de gangues e criminosos em geral rimando, algo incomum para o rap da costa leste, mais duro e marcado, materliazando a atitude dos rappers.

Uma outra questão que envolve a influência do rap pelo funk são os refrões em formato “pergunta e resposta”. James usou e abusou desse recurso, se tornando uma de suas marcas registradas. O hip-hop, logo após sua criação, passou a fazer uso dos Mc’s enquanto Mestres de Cerimônia, como o próprio nome sugere. Mas não havia o rap ainda, que foi incorporado anos mais tarde. Com isso, os rappers passaram a criar melodias nas faixas, rimas simples e só. Mas foi com Eric B e Rakim que o jogo mudou.

Em 1987, a dupla lançou o disco “Paid in Full”, aclamado como um dos álbuns essenciais do rap. A dupla mudou a forma como as rimas eram feitas, implementando técnicas de métrica mais afiadas, flows variados e histórias mais bem contadas. Na faixa “I Ain’t No Joke”, é possível observar a influência do funk em paticamente todos os instrumentos. Além deste sample – “Pass the Peas”, criado pelos “The JB’s”, banda de James Brown – existem mais 7 amostras de músicas de James Brown.

James, portanto, influenciou não só a forma como os refrões do hip-hop foram compostos, como a musicalidade em geral. Para se ter uma dimensão disso, a Redbull listou as 10 músicas mais sampleadas na história do hip-hop, com James Brown ocupado a terceira, quarta e sexta posição, com as faixas “Think (About It), “Funky Drummer” e “Funky President”, respectivamente. E, no site WhoSampled, existem 12771 amostradas creditadas a James Brown, a maioria, certamente, usadas por artistas de hip-hop.

Adlibs

É importante falar, também, da maneira como James Brown cantava e como isso foi importante em outros segmentos do rap. James tinha um estilo próprio de preencher a sua música com gritos e grunhidos. Ele seguia uma lógica de que “tudo é percussão”. Esses elementos davam uma sensação de improviso e gingado para a música que, fugindo dos padrões verso-refrão-verso, eram complementadas por cânticos curtos, com o objetivo de conduzir a banda, criar atmosfera e dar uma aparência mais despojada a sua criação, o que não a tornava, de forma alguma, amadora. Várias são as músicas onde podemos observar esses elementos, sendo a principal delas “The Payback”. A forma como James joga algumas palavras nesta faixa – para além da composição em si – é um exemplo de como ele usava este elemento de forma habilidosa e extremamente sonora, fazendo da sua voz uma espécie de instrumento.

No rap nós temos o que chamados de Adlib. Adlib vem de “ad libitum”, palavra do latim que significa “”a seu gosto” ou “como você desejar”. Os adlibs são usados como trechos de improvisação no rap, para dar preenchimento as rimas dos artistas. O trap trouxe esse elemento com muita força nos último anos, sendo a atual força motriz da cena atual do gênero. Fica claro, então, como os improvisos curtos de James ajudaram a criar mais esse elemento dentro do hip-hop.

Breakdance

Não bastasse tudo o que já fazia, e de forma magistral, James Brown era também um exímio dançarino. Criou diversos passos, caracterizados pelos saltos, giros e a facilidade com a qual deslizava os pés. Na época de James haviam diversas bandas que se apresentavam musicalmente, e nessas apresentações envolviam passos de dança. Mas James levou isso a outro nível.

Em meados dos anos 60, no Bronx, bairro nova-iorquino, a dança de James Brown – chamada de “Good Foot – influenciou os jovens daquela geração a criar um novo tipo de dança, chamado “Top Rock”. A dança era baseada nos passos de James, unida a algumas formas de provocação não-violenta, que esses jovens aprendiam na TV ou qualquer outro local. Perto dali, no bairro do Brooklyn, a dança foi modificada, ficando conhecida como “Brooklyn-Rock”.

Foi então que os garotos do Bronx, vendo que sua dança era menos exibicionista que a dança do Brooklyn, decidiram mudar algumas características do “Top Rock”, como dança de chão, o que viria a se chamar “Floor-Rock” ou “Footwork”. Importante lembrar que, nessa época, a dança assumia o papel de um confronto de gangues, usando até mesmo sequências de Kung-fu.

Não demorou para que a novidade fosse levada ate as festas do DJ Kool Herc – pai fundador do movimento hip-hop – onde os garotos e garotas dançavam nos intervalos, ou breaks das festas. Kool Herc percebeu que haviam muitos jovens fazendo essas danças, e resolveu anuncia-los como “B-boys” e “B-girls”, ou “Garotos(as) do break!”. A partir disso, as danças do Brooklyn e Bronx se unificaram, no que viria a ser conhecido como breakdance. Os pioneiros do movimento breakdance, Richard “Crazy Legs” Colon e Kenneth “Ken Swift” Gabbert – ambos da Rock Steady Crew – citam os videos de James Brown e filmes do Kung-fu como influências para a criação deste elemento do hip-hop.

O legado de James Brow

É praticamente impossível mensurar o tamanho da contribuição de James Brown para a comunidade afro-americana. Sendo um dos criadores indiretos do hip-hop, que se tornou o movimento cultural e social mais importante da última década, fica evidente que, sem James, a música seria outra, bem como a cultura negra nos Estados Unidos e em toda a diáspora.

James nos deixou em 2006, mas o seu legado é tão vivo que hoje, dia 03 de maio de 2020, toda a comunidade comemora seu 87º aniversário, relembrando, saudando, celebrando e dançando a sua obra em vida, como um dos artistas negros mais importantes de toda a história da música, deixando sua marca para sempre nos corações do povo que usou a música como arma para a liberdade e a diversão. Esteja em paz, James!

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.