Direto do Rio de Janeiro, cria do KTT e da Lapa, CHS apresenta seu novo disco Tudo Pode Acontecer (2020). Desde o início de sua carreira quando ele, Bk’, Bril e JXNV$ compunham o Nectar Gang, os fãs esperavam um disco completo do MC.

CHS por @pedefeijoao

CHAO$ (2018) logo se tornou uma obra apreciada pelo público do rap, principalmente por conter as faixas “Ponteiros”, “Futura Ex” e “Inspiração”. Porém, algo ainda faltava – mesmo que a ambição de Gustavo sempre estivesse presente em suas músicas:

Se prepara que esse é só o começo
Corpo fechado, várias guia e terço
Nectar Gang tá na pista, então sente o peso
Cê fala, mas na prática não faz um terço

CHS em KGL (2015)

Uns dizem que são do futuro
Eu sei que vieram bem antes
Levantaram todas as pirâmides
Há quem diga que afundaram Atlantis

CHS em Profecias (2017)

Em TPA, Gustavo mostra mais facetas de sua personalidade , tanto nas doze faixas que compõem o disco quanto na capa que é inspirada na arte do disco Liquid Swords (1995) do GZA, membro do Wu-Tang Clan.

Na capa original, GZA batalha com Masta Killa em uma arena de xadrez. O artista americano recorda ter tido a inspiração após ter feito 30 partidas seguidas com seu companheiro do Wu. Essa arte inspirada nos quadrinhos encaixa perfeitamente com as habilidades do próprio Gustavo, que além de ser MC também é formado em design, responsável por diversas artes do Nectar Gang e da Pirâmide Perdida, criador da marca TRAMA e grafiteiro – sua alcunha artística inclusive deriva do grupo de grafiteiros que atendia pelo nome Criminal High School.

CHS evidencia toda sua originalidade na maneira como constrói suas canções. Além de não obedecer às tradicionais 16 linhas em um verso ou elaborar refrãos mais longos, em alguns momentos utiliza o recurso de repetição para ressaltar alguma ideia. Contudo, estes elementos não prejudicam nem um pouco a experiência de ouvir o disco. O refrão da faixa de abertura, “Tudo Pode Acontecer”, é um exemplo:

Sempre duvido e me certifico
Mas não acredito, é tudo fictício
Pensar na frente e lembrar do início
Se tiver errado, eu mesmo modifico
Há tantas formas de poder falar
Há tantas formas de você entender
O prêmio é alto pra quem merecer
Eu sei que tudo pode acontecer

Combinado a estas características de estrutura e repetição, CHS também possui um conjunto de flows que variam com muita naturalidade. Sendo que muitas vezes a própria entonação da voz é o suficiente para que o MC dê a variação necessária para deixar a experiência de uma faixa única.

O segredo é ser dinâmico, eu não posso ser mais um
Como vou, como fui, na minha rima tudo flui
Tipo fogo na madeira, força nunca diminui
Fé

“Segunda”

CHS revela que neste disco procurou surpreender o ouvinte em cada faixa, mostrando que tudo pode acontecer a partir das vivências contadas na perspectiva do MC. Isso se traduz em faixas que relatam histórias de amor, contam experiência profissionais, refletem sobre as próprias crenças e apresentam seu lado divertido do MC.

Tênis limpo, roupa rara
Né questão de ser de marca
Né questão dela ser cara
O que importa é ter estilo

“Me Arrumei”

Compramos coisas que não precisamos
Com dinheiro que não temos e seguimos pagando
Quase em doze vezes, acho que foi engano
Para impressionar pessoas de quem nunca gostamos

“Minimalismo”

É raro o efeito do seu gosto
É raro a forma do seu rosto
Sei que vale todo gasto, mina
Pode consultar seus astros
Que ele vai guiar seus passos

“Signos”

A produção também é diversificada. São oito nomes assinam as doze faixas. Embora o boom-bap seja o som mais presente, a sonoridade é bem contemporânea por incorporar elementos do trap, house music e afrobeat. Três produções me chamaram muito atenção. A primeira foi a do JXNV$ em “Tudo Pode Acontecer”, que lembra um pouco algumas de suas produções em em Castelos & Ruínas (2015). A sua característica mistura de trap e do boom-bap combinada com samples resulta numa atmosfera que dá uma grandiosidade para faixa.

Depois, “Tambores”, produzida por Victor Henry, traz alguns elementos da house music com trap, uma combinação extremamente harmoniosa que cai como uma luva para o clima espiritual da faixa. Sem dúvida uma das melhores produções do disco.

Por fim, a dançante “Signos” é um afrobeat com trap produzido pelo Mind que tem um potencial enorme de tocar nos bailes de rap. A faixa romântica também conta com verso sensível do SiQ e um excelente refrão na voz de Torres:

Sabe que eu sou movido pelo fogo
Sei que ela ama o calor do meu corpo
Diz que meu signo me faz um louco
Mas mesmo assim ela não vive sem mim

As participações, embora poucas, também acrescentam uma outra dimensão para o disco. Juyè preencher “Tambores” com vocais adicionais e entrega um belo verso “Segunda”:

Falam demais sem saber fazer o básico
Hipocrisia modo ativado
Hilário; mas cuidado!
Meu bem, nem tudo fica no passado

Akira Presidente e Bk’ mostram uma sintonia com CHS que poucos artistas possuem quando se trata de participações. É perceptível não apenas a amizade entre eles, mas também a evolução artística que conquistaram juntos na Pirâmide Perdida. Esta identidade conjunta fica evidente em todos os trabalhos do selo e pode ser vista no videoclipe de “Me Arrumei” dirigido pelo Cauã Csik.

Quando CHS finaliza o disco dando sua interpretação do conceito de minimalismo, eu percebo uma contradição. Não que a sua interpretação não possa ser aplicada às suas rimas ou à sua arte em geral, mas porque o resultado da arte do Gustavo é complexo, com muitas camadas, muitas interpretações, muitos sentimentos e experiências.

Tudo Pode Acontecer é um disco muito bem construído nas temáticas, rimas e produções. É perceptível o cuidado que CHS tem em montar suas rimas e seus trabalhos, tomando seu tempo e respeitando a qualidade acima de tudo.

No rap eu encontrei meu alicerce
Na Lapa em cada esquina, eu vi se tornar febre
É, o sample é o mesmo do Kanye West
No show eu dou a vida, mas eu não sou Daleste

“KGL Ghost Town”

Ele não mente. Não porque a produção do Biggie Diehl tem o sample da música “Martín Fierro” (1970), do Grupo Vocal Argentino, o mesmo usado por Kanye West em “Closed On Sunday” (2019), mas porque o rap é a arte que corre nas veias do CHS, sejam elas evidenciadas nas rimas ou nas suas composições visuais.