Quatro anos depois se reunirem pela primeira vez, para iniciar o projeto, Supperbiro e DJ Comum trazem para as ruas seu primeiro disco em conjunto, “Meu lugar”. Durante esse tempo, foram reuniões, rolês pelas noites de São Paulo, dúvidas e muito corre, até que o álbum pudesse chegar aos ouvidos dos mais antenados fãs do boom-bap clássico.
Tocando as teclas do pad desde meados de 2002, DJ Comum, que foi do Fruity Loops 3.5 as SP’s e MPC’s, é da Casa Verde e, desde que descobriu seu talento para as produções, foi se afastando cada vez mais dos microfones para lapidar o talento com as batidas.
Supperbiro, também vindo da Zona Norte de São Paulo, é o único homem de uma família de cinco irmãs, que carregam desde o berço o espírito dos batuqueiros tradicionais do nosso samba de raiz.
Apesar do processo duradouro, a maioria das faixas, segundo a dupla, foram produzidas no primeiro ano, com excessão de “Raça” e “Paga pra ver”. E foi depois de algumas apresentações ao vivo, com uma resposta super positiva do público, que a dupla resolveu arregaçar as mangas para colocar o projeto, de fato, na rua. E. pra isso, escalaram Bonsai (Coletivo Maulaoka), Phantom DK (Wu Tang Latino) e Kivitz para participarem das faixas, com a pós produção ficando nas mãos de SonoTWS, CESRV e a própria dupla. Além da parte musical, os artistas TInho Sousa, Fabio Q e Ricardo Palamartchuck criaram a identidade visual do projeto, com um toque Wildstyle, como manda a sonoridade dos anos 90, tão apreciada pela dupla.
Nesses quatro anos fomos apresentando algumas musicas ao vivo, e a identificação do público foi muito forte, foi ai que decidimos investir de fato no álbum. Então mostramos o disco pronto pra algumas pessoas que confirmaram que o trabalho precisava ter qualidade profissional pelo potencial das músicas. Por fim, fizemos todo processo audiovisual com profissionais de alto nível, e estamos muito felizes com o resultado.
“Meu lugar” é como um manifesto, um grito, um auto-retrato de dois artistas que, juntos, viveram a vida no sentido mais real da palavra – na pele, no peito, na mente, transmitindo suas vivências em forma de música. É um disco que reflete questões pertinentes a uma classe social que emerge como maioria, mas que, na prática, é vista como uma minoria a ser ignorada. Foi dentro deste universo que Supperbiro e DJ Comum cresceram, e seria inevitável falar sobre ele. Durante as 8 faixas, a dupla desperta lembranças e reflexões sobre negritude, pobreza, sobre o que é sobreviver e, acima disso tudo, mostra que o ofício de MC e produtor vai além dos microfones e samplers. É uma espécie de manual de vida, escrito por dois artistas de uma região pobre da cidade de São Paulo que, há anos, tem feito rap apenas por amor. É também uma afronta ao mercado, que hoje fecha os olhos para alguns segmentos, em troca de plays e mais plays.
Quando nos conhecemos, estávamos passando por momentos muito parecidos, em todas as áreas de nossas vidas. E como rap é um som de protesto, originalmente, vomitamos’ tudo o que nos restava na época.
A temática do disco traz uma potente mensagem social. Referências ao caso do ônibus 174 se misturam às vivências pessoais dos dois artistas, mostrando que o rap, de fato, os salvou do destino que lhes foram designados pelo sistema. Isso se transforma numa visão clara sobre a questão de classe, raça, e como essas duas formas de opressão podem levar muitos dos nossos semelhantes a ter somente a opção do crime, da miséria, ou da morte precoce.
As histórias ouvidas de seus familiares mais velhos, amigos próximos e pessoas de seu entorno engrossam o caldo do álbum, dando uma sonoridade ímpar, com retratos pessoais e reais de uma geração que tem lutado para sobreviver em meio ao caos cada vez mais profundo em que somos jogados, diariamente. Mas, dessa dialética, surge também uma resposta aos problemas, uma forma de sair deles e conseguir ter uma vida digna, como todos merecemos e queremos, como na faixa “Bem melhor”.
Outras questões muito presentes na obra são a fé e Muhammed Ali, como pontos de força e esperança. Supperbiro conta que, viver em uma casa de brancos e negros em comunhão não evitou que, nas ruas, enfrentasse todo tipo de descriminação, como quando ia aos bailes e festas com seus amigos, e percebia os olhares diferentes, sendo ele negro e pobre. Foram essas experiências que marcaram o MC, o fazendo entender como o racismo pode nos colocar para baixo de diversas maneiras. E dentro dessa questão, as figuras de Ali e Deus são como uma fortaleza para o rapper,
Na quebrada, a polícia faz questão de ser sua inimiga. O conceito de sucesso é trabalhar num banco, ou fazer faculdade…isso é muito pouco! Nós não somos educados a desenvolver nossos dons, e sim a servir à maquina. Cito o Ali porque foi um cara que viveu do seu dom, e deve ter acreditado sozinho em muitas horas, pelo tanto de barreira que teve que passar. Me vejo nesse ponto com ele, e acho que minha missão não só como MC e ser humano é trazer esse despertar da consciência pro sentido de estar vivo, ter senso crítico consigo mesmo e com o mundo a respeito da nossa passagem pela vida.
E sobre a religiosidade, ela vem de uma mistura famíiiar de umbandistas, católicos, e atualmente alguns cristãos protestantes. Aprendi batucar no saravá, toquei violão na missa, e já fiz rap na igreja de crente. Sempre me senti muito cuidado por essa Força que atua no mundo espiritual, a qual eu chamo de Deus, e que outras pessoas vão dar outros nomes, mas particularmente acho que no fim das contas é a mesma Força, desde que a essência seja respeito e dignidade humana. Acredito que a fé pode materializar o que a gente quer que exista, através de atitude principalmente. Se cada um de nós acreditar que não somos os culpados por não poder viver fazendo aquilo que amamos, não ter o que desejamos, e que não precisamos ser melhor do que ninguém pra se sentir bem, já é uma resposta viva contra a voz de morte vestida de república nos dias de hoje.
Uma marca profunda em “Meu lugar” são as referências ao rap nacional. A abertura do disco apresenta recortes de grupos do RZO, Ordem Natural, Racionais, Kamau, e durante o álbum podemos notar mais alguns trechos do 509-E, entre outros artistas. Isso é bastante comum em obras anteriores do rap nacional, e mostra não só a influência destes grupos, como também uma forma de homenagem e agradecimento aos precursores da cena paulista, gerações anteriores ou mesmo contemporâneas ã “Meu lugar”, dando a liga do velho ao novo, do antigo ao recente, mesclando tudo isso numa sopa de sonoridades que faz deste disco algo ímpar nos dias atuais. Além do rap, a música negra como um todo está presente no álbum, como é possível observar no sample de Isaac Hayes, na faixa “Ladera”, que DJ Comum usou com maestria na condução do som, e mostrando como estes estilos compõem sua diversidade enquanto produtor.
E o samba, grande estilo musical do nosso país, também se faz presente. A influência do gênero foi de extrema importância na vida do Biro, que, nascido em uma família de herança ligada aos sambistas baianos e o choro, se tornou uma espécie de lingua materna para o MC, onde, nas festas em seu bairro, as rodas de samba chegavam a durar 3 dias. E, segundo o mesmo, o samba é mais do que um estilo musical que ele apenas aprecia enquanto ouvinte.
Se eu precisar improvisar no rap eu me viro ali com quatro versos batidos, mas se você tocar um cavaco do meu lado, a gente vai até a corda estourar sozinha hehe. Como MC, eu já escrevi muita letra e tenho mais letras que joguei fora do que gravadas, e com essas dá pra fazer mais de 10 álbuns. Mas eu tenho muito mais letra de samba do que de rap, e nenhuma dessas foram pro lixo. Tô aprontando umas coisa aí…sem pressa.
Com toda a qualidade do disco, é impossível não pensar no contraste sonoro de “Meu lugar” com a musicalidade que o rap tem apresentado atualmente, com o boom do Trap e outras vertentes ligadas ao som de Atlanta. Em uma época onde o boom-bap tem se tornado escasso, artistas como DJ Comum e Supperbiro são de extrema importância para que os 4 elementos do hip-hop ainda tenham espaços, e, mais ainda, o som dos anos 90, junto dos demais estilos que tornam o rap tão eclético e democrático. “Meu lugar” faz jus as suas referências e traz um disco com um peso social e poético absurdo, unindo as influências da velha guarda do rap com os sons mais atuais, que tem reinventado o sub-gênero do estilo e dado um fôlego para muitos fãs e artistas.
Ouvimos as pessoas dizerem que há tempos não ouviam um rap igual o nosso, ou, o som que fazemos está escasso hoje em dia…jovens de 18 anos e adultos de mais de 50. Um selo de rap, de expressão no Brasil, nos sondou para uma possível contratação, dizendo que nosso estilo de som era diferente do que toca atualmente. Nós ouvimos esse tipo de rap desde sempre, e vemos que há novidades todos os dias, as pessoas que deixam de buscar, por isso não entendemos o termo ”retorno do boom-bap” se ele nunca saiu do seu trono.
E sobre o futuro, a dupla é enfática em dizer que o rap é como um vício, e que muita coisa ainda está por vir, mas, por enquanto, o objetivo é que esse a mensagem de “Meu lugar” alcance o máximo de pessoas.
A nossa família que acredita junto com noiz nessa loucura. Tutu vulgo U.Santo, que cantou os refrões do álbum. Aos irmão que participaram nas faixas: Phantom DK, Bonsai, Kivitz. Aos pioneiros do hip-hop, que proporcionaram estarmos aqui, as novas e futuras gerações que honrarão essa missão. A todas as pessoas que se identificam com nossa arte, e aos irmãos do Raplogia pelo espaço!