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Análise | Rashid – Tão Real

By 30 de janeiro de 2020 No Comments

O prelúdio

Nasci no país da bola e quis o mic, farto, sem engolir sapo
Primo, a terra é redonda, reto é meu papo

Rashid em “Poetas no Topo 3.3 – Parte 1”, onde no videoclipe fomos apresentados a data de lançamento da versão final do disco

Com uma estratégia inusitada, lançar o álbum como se fosse as temporadas de uma série, Rashid chega com Tão Real, na sua versão completa em Janeiro de 2020, dois anos depois do seu belo álbum Crise (2018). Acompanhado das temporadas do álbum, também tivemos a série em seu canal. Em ambos Rashid nunca se mostrou tão sincero, sinceridade esta que sempre foi uma características marcantes do MC. Não é a toa que o nome do álbum se encaixa tão perfeitamente com toda a narrativa que envolve o álbum.

1ª Temporada – O personagem principal: Rashid a.k.a o justo a.k.a tão real

Na primeira temporada você vê um MC confortável no estilo que o próprio descreve como seu favorito, rimando numa levada 4 por 4 em produções mais tradicionais. É como se você estivesse sendo apresentado, ou reapresentado, ao Michel que vimos evoluir nos nestes últimos 10 anos. Assim, ecoa um Rashid de Hora de Acordar (2010) ou Confundindo Sábios (2013), como o próprio descreve em “A Busca” – Mano, isso aqui tá parecendo aqueles rap que nós fazia antigamente, tá ligado?

Pôster do Disco “7ão Real”, uma alusão aos pôsteres de séries e filmes que apresentam as principais participações e personagens.

Na faixa que dá nome ao disco, entendemos a conexão que o MC tem com a música e seus ouvintes. Rashid e Michel aqui são dois lados de uma mesma moeda, o artista se mostra a expressão daquilo que o indivíduo vive, e tal como nós, convive com sentimentos de angustia, alegria, tristeza, independente de suas conquistas ou pela fase da vida que passa – como é retratado no refrão: Tendo 1 milhão de plays ou 100 sigo tão real/Meu som não é só por mim, é pela gente e isso é tão real.

Mas o trecho que mais marca é o fim do primeiro verso:

Com retratos de dias que me modelam
Mas não fotos reveladas, fotos que revelam
Que o zica memo é o Michel e até espanta
Porque ele vive essas coisas tudo aí que o Rashid só canta
Pra mim nem tudo é rima e show
Só que no final das conta quase tudo é flow
Cansei de cantar e você de ouvir história sofrida
Mas não reclama comigo, liga no SAC da vida, aí

2ª Temporada – Outras temáticas

Já na segunda temporada, surgem diferentes temas, como a sequência da sua série favorita, a qual na nova temporada explora algumas temáticas que eram secundárias. O cenário é propício, pois agora entendemos as motivações do nosso personagem principal e nada mais justo que explorar novas histórias. Esperto com as palavras, Rashid mostra trocadilhos e faz metáforas com questões financeiras e a relação empregado x patrão em “SNSS”, uma das minhas faixas favoritas de todo o álbum e onde ele lança um questionamento que mostra a sinceridade que tanto marca suas rimas:

Mas e se eu fizer uma fogueira, depois jogar dinheiro nela
Eu vou tá queimando notas de papel ou o valor que a gente deu pra elas?

Ele segue tocando na questão do alcoolismo em “Bem Loko”, um assunto que é pouco recorrente no rap. Mostra seu lado confiante em “Apavôru”, seu lado romântico em “Sobrou Silêncio” e seu lado reflexivo em “Carrosel” e “Um Mundo de Cada Vez”, faixas nas quais Rashid rima pensando ou se colocando no lugar do outro, demonstrando outra característica além da sinceridade, a empatia. E na última faixa desta temporada, vemos um MC muito maduro, que enxerga além das dicotomias clichês e sem perder a humildade que o fez chegar até aqui:

Pra madame no carro, eu e o morador de rua, representamo a mesma coisa: risco
E pro morador de rua, talvez eu e a madame estejamos no mesmo universo, misto
A sós, nenhum de nós realmente se olha (Ahn ahn)
E cada um de nós fica em sua bolha
Uns por escolha, outros por falta de
Todos numa bolha maior, nos falta ver
E eu artista, achando que tenho a visão
Que tô vendo alguma coisa ali que eles não
Prepotente, de ser herói tô aquém
Só mostra que meu mundo precisa ser salvo também
Quase um roteiro de Kubrick
Mudar um mundo sem desarrumar o outro
Isso é um cubo de Rubik, hein?

3ª Temporada – A season finale

Na última temporada, pelo menos por enquanto, ou como encerramento desse capítulo da carreira de Michel como músico, merecemos uma season finale que faça jus ao que ouvimos até aqui. E pode ter certeza, nosso personagem principal não decepciona. Em “V-I-S-Ã-O” entramos na mente do MC, enxergamos as imagens descritas em suas rimas, sua ambição e sonhos. Como estamos chegando no fim dessa história, o clima é tenso nas primeiras faixas, onde as temáticas são mais sérias. Porém, logo o clima pesado é substituído por um mais vulnerável, confortável. Em “Pipa Voada”, ele versa como se fosse uma criança que brinca sem se preocupar com o que está fazendo, de forma natural, o que combina com a fase que o Emicida, amigo de longa data, se encontra. É fácil de se emocionar nesse momento do disco.

Rashid não domina só o tempo das rimas e dos ritmos, ele domina o ouvinte com as rimas marcantes dessa terceira temporada, a confiança e sinceridade se traduz na calma com que constrói cada rima, alongando o final. É como aqueles episódios de final de temporada, onde temos alguns minutos a mais com nosso personagem favorito. Isso não impede que existam algumas surpresas:

Tenho fingido amar meu emprego
Tenho sorrido por educação
Tento praticar o desapego
Tenho fingido gostar do patrão
Cumprimento as pessoas na sala
Perco horas em frente à TV
E até o racismo velado do supervisor lá da firma eu finjo não ver
Ah, que mais vocês querem de mim, porra?

E no último capítulo, o título “Eu” é muito propício. A sua autorreflexão surgem como conselho: Não seja covarde. E tal como esse álbum, com 1h9min, na era onde as músicas se encurtam, os álbuns contam históricas em poucas faixas e em pouco tempo, Rashid mostra tudo que Michel passou e conquistou. Os medos e as angustias estão presentes, mas também são eles que motivam o MC:

Revendo o que essa saga inclui
Eu já quis ser outra pessoa mas o fato é eu nunca fui
Só eu pisei meus passos, só eu chorei meu choro
Na base do tomara, sem cara, sem coro
E se vivi a bomba então é meu o estouro
Me agarrei a isso como se tivesse quatro braços, igual Goro
Sem mal agouro, só meu agora
Um universo aqui dentro e um planeta lá fora

Tão Real – O Veredito

A estratégia de lançar um álbum longo como esse em três partes foi inteligente, pois cada temporada se sustenta por si só, mas assim como uma série que já foi encerrada, só juntas para entendermos cada nuances do personagem, o Rashid, e o porquê dele nos encantar tanto. E não seria difícil continuar escrevendo sobre os personagens de suporte (as excelentes participações) ou ainda a ambientação da série (toda a gama de produtores que inclui o próprio MC), entretanto, não quero estragar esta bela experiência para o ouvinte. Então, sem mais spoilers, sugiro que ouça Tão Real, um disco que abre a cena do rap nacional em 2020 muito bem.

 

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