Nos anos 2000, uma nova leva de rappers surgiu em todos os cantos de Nova York. Descontentes com os rumos que o rap estava tomando, cada vez mais comercial e com pouco valor a cultura do MC, esses artistas começaram a se reunir pelas ruas do Brooklyn para fazer freestyle, que ocorria em batalhas épicas ao som de instrumentais cada vez mais aprimorados. Falar dessa geração e não falar da gravadora Def Jux é um sacrilégio. E falar da Def Jux sem falar de El-P é ainda pior, então precisamos situar quem é Jaime Meline, a lenda El-P.

Filho de músico de jazz, El-P é o grande nome por trás da evolução do rap alternativo nos anos 2000. Foram nessas batalhas de freestyle ele que se tornou cada vez mais conhecido, pois o mesmo é cria do Brooklyn e vivenciou essa cena do começo. Extremamente avesso ao modelo de ensino, foi expulso da escola diversas vezes, até que cedeu a arte dos beats e das rimas. Ninguém ainda sabia, tampouco tinha dimensão, mas, em 1997, El=P já havia produzido um clássico absoluto do que viria ser chamado de “Indie Hip-hop”, o famoso rap underground. Considerado um marco histórico do hip-hop independente, o álbum “Funcrusher Plus” nasceu da junção de El=P, Bigg Jus e Mr. Len, que, em 1992, formaram o Company Flow.

O disco é aclamado por diversos fatores, mas o que mais me chama atenção é o fato dele ter sido lançado nos anos finais da era de ouro do rap, que consistia em discos com uma abordagem de produção e letras bem específicas. O Company Flow nadou contra a corrente, trazendo um disco que mais se parece com uma roda de freestyle gravada em estúdio. 22 anos depois, podemos afirmar que “Funchusher Plus” é um dos grandes clássicos do rap.

Mas foi no ano 2000 que El-P deu o grande passo na sua jornada: A fundação da Def Jux. Junto de  Amaechi Uzoigwe, o artista novaiorquino criou o selo com o desejo de manter viva a chama dos seus primeiros trabalhos, e ter um lugar onde pudesse fazer os raps como queria, cheios de referências a Philip K Dick e produções futuristas. Logo no ano seguinte a gravadora foi processada pela Def Jam, que alegava ser um problema a similaridade dos nomes de ambos os selos. Mas foi também em 2001 que a Def Jux lançou o sua primeira obra-prima.

“The Cold Vein” foi o primeiro disco do grupo Cannibal Ox, composto por Vast Aire e Vordul Mega. Considerado um dos 200 melhores discos dos anos 2000, é, certamente, o melhor trabalho já produzido pela gravadora. El-P foi não somente o produtor executivo como o dono da produção sonora do disco, que passeia por uma Nova York fria e pós apocalíptica. A sorte estava lançada e a Def Jux fincava seus pés como um dos nomes mais promissores da geração dos anos 2000. A importância do disco é tão grande que ele é considerado, ao lado de “Madvillainy”, como os dois maiores álbuns do rap alternativo de todos os tempos.

Apesar da grande repercussão do disco, o grupo não conseguir manter a mesma consistência. Relatos de que Vordul Mega chegou a morar na rua depois do lançamento, fim do grupo e saída da Def Jux colocaram o Cannibal OX no limbo, mas o nome já estava gravado na historia do underground. Assim foi que El-P dirigiu a sua primeira grande obra.

Entender a importância desse disco é uma forma de entender que o rap não precisa ser linear como a maioria dos amantes acreditam. As influências e referências não seguem uma linha reta, mas funcionam como uma nuvem interligada de músicas, rimas, ideais e contextos. Por isso a estranheza em não ouvir James Brown, Roy Ayers e os deuses da Blue Note em “The Cold Vein”, mas sim as guitarras arranhadas do rock progressivo e os sintetizadores mal equalizados, que tornam essa produção quase como uma versão sonora e mais sombria de Blade Runner.

 

Um ano depois do sucesso estrondoso de “The Cold Vein”, a Def Jux apostou em mais dois trabalhos majestosos. “Day Light EP” e “Deadringer”, de Aesop Rock e RJD2.

O segundo tem uma produção menos introspectiva e futurista do que o comum na gravadora, mas não perde a essência de ser um contra-fluxo artístico. O disco é considerado como um dos 100 melhores discos de rap alternativo de todos os tempos, ainda que eu, particularmente, não ache uma obra tão boa para tal.

Por outro lado, Aesop Rock trouxe um EP incrível, com tudo de mais autêntico que o artista possui: sonoridade, métrica e o uso abusivo, no melhor sentido, de palavras jamais rimadas. Não pra menos, Aesop foi considerado o rapper com o vocabulário mais amplo da história do rap, superando até mesmo Shakespeare. Aesop foi, com certeza, a grande estrela da Def Jux, e “Day Light EP” é só mais uma amostra disso, que começou em 2001, quando o artista lançou “Labor Days”, um disco que trata da classe trabalhadora e suas batalhas diárias.

Ainda sobre “Labor Days”, é importante dizer que o disco é considerado o maior clássico de Aesop Rock, e que a recepção do trabalho foi quase unânime em considera-lo uma obra prima. Sites como allmusic, HipHopDX.com , RapReviews.com e Pitchfork Media atribuiram notas acima de 8, em alguns casos atingindo a nota máxima de avaliação. E esse foi somente o terceiro trabalho do MC.

Dando um pulo na história, 2005 foi o ano em que 50 Cent já havia lançado dois clássicos do rap, “Get Rich or Die Triyn” e “The Massacre”, e era o homem a ser batido tanto no jogo como na industria. Enquanto isso, Mobb Deep chegava ao nível mais baixo de sua carreira com “Blood Money”, e “The Shinning” saia como disco póstumo do grande J Dilla. Correndo por fora, a Def Jux lançou “Hell’s Winter”, do Cage.

Esse álbum fez um sucesso tão grande que foi considerado como um dos melhores de 2005, algo incomum para um trabalho feito por uma artista e uma gravadora da cena underground americana. Além disso, Cage trouxe uma visão completamente pessoal sobre sua vida, infância e visões de vida, como um “inverno frio”. O disco também esteve em listas importantes de lançamentos e reviews. E, mais uma vez, El-P comandou as MPC’s e o resultado é uma obra lírica impecável.

Já Mr. Lif lançou, em 2006, “Mo’ Mega”, seu segundo álbum de estúdio.

O disco chegou a 27ª posição nas paradas da Billboard, o que é um número bastante expressivo para um selo que era odiado pelos rappers puristas. Vários sites especializados deram boas notas ao disco, colocando no alto o seu tom político e sua produção, também assinada por El=P. As faixas são um misto de boom bap fora da curva com basslines sujas, que foi se tornando cada vez mais a marca registrada da Definitive Jux.

É fácil dizer que o disco foi bem recebido dentro de um espaço seguro da cultura, onde artistas como Mos Def, Talib Kweli, Aesop Rock e outros tentavam trazer de volta o espírito independente e livre do rap, mas que foi renegado por uma indústria cada vez mais milionária e cheia de “novos talentos”, que muitas vezes eram apenas artistas comuns com contratos valiosos. E assim seguiu a caminhada da jovem gravadora, buscando rumos totalmente diferentes da cena como um todo.

Em 2008, um ano importante para o RAP, dentro de uma das décadas mais promissoras do estilo, o rapper Del the Funky Homosapien se juntou a gravadora de El-P para lançar o seu quinto disco de estúdio, “Eleventh Hour”.  Diferente dos álbuns anteriores lançados pela Def Jux, “Eleventh” foi totalmente produzido por Del the Funky, o que mostra a liberdade criativa que os artistas sempre tiveram na gravadora, fugindo da necessidade de criar discos voltados para a industria.

Esse álbum, apesar de seguir uma linha muito bem definida pele selo, segue uma estética que trás o Funky dos anos 70 de forma bem forte. A maioria dos jornalistas da época elogiaram muito o trabalho, dando notas acima de 7 para o disco. O mesmo ficou na posição 122 da Billboard 200, vendendo 6 mil cópias na primeira semana. Um número baixo, mas é sempre importante lembrar que se trata de uma gravadora voltada inteiramente ao underground e a criação livre de seus artistas, diferente do que ocorria no mainstream.

Após todos esses anos de lançamentos, inovações e fortalecimento da cultura, a Def Jux anunciou, em 2010, um hiato – que, na verdade, se tornou o fim da gravadora. El-P, em entrevista para o site Ambrosia For Heads, El afirmou que, “a Def Jux se tornou uma bolha da qual não mais o representava”.  Após isso, o rapper e produtor anunciou que deixaria o cargo de diretor artístico do selo. Mas, antes disso, a Def Jux deixou seu último disco nas ruas, para selar o legado que construiu.

Em agosto de 2010 foi lançado o disco póstumo de Camu Tao, que havia falecido no mesmo ano, em decorrência de um câncer de pulmão.”King of Hearts” foi o último disco da carreira do artista, que havia assinado com a Def Jux alguns anos antes.

A morte do artista foi muito sentida por todos os artistas do selo, e seu lançamento foi uma forma de homenagear Camu Tao. Em seu álbum de 2016, The Impossible Kid, fez uma reflexão sobre como a morte de seu amigo o levou a um estado de paralisia emocional de 8 anos e a uma tendência crescente de isolamento social.

Este 25 de maio marca 9 anos desde a morte do meu amigo Camu Tao, um evento que serve como uma âncora emocional e narrativa na música e na minha vida. Eu queria refletir sobre as coisas que mudaram desde então e tentar conectar alguns eventos que eu não percebi serem potencialmente relacionados.

El-P dedicou seu álbum Cancer 4 Cure à memória de Camu Tao. Anos mais tarde, ele indiretamente fala sobre ele em seu verso na faixa “Thursday in the Danger Room” em “Run the Jewels 3”.

O álbum teve um bom retorno da crítica, com notas altas e diversos elogios. A PopMatters, deu ao álbum 6 estrelas em 10, descrevendo-o como “o som de Camu Tao estendendo a mão, tentando se conectar com as pessoas enquanto luta com os elementos mais pessoais de sua vida”.

Resolvi fugir da ordem cronológica que segui durante o texto, devido a importância e beleza desse disco, talvez o maior clássico de El-P e um dos mais atemporais da Def Jux.

Assim como “The Cold Vein”, “Fantastic Damage”, lançado em 2002, é um disco pós apocalíptico, baseado em experiências pessoais e fortemente influenciado pelos atentados de 11 de setembro de 2001, nos Estados Unidos. El-P produziu o disco todo e compôs todas as letras. O que se vê nessa obra é algo quase que inexistente no rap até então.

El-P produziu o disco com 1 teclado de amostragem Ensoniq EPS 16+, 2 mesas giratórias Technic 1200, 1 mesa de mixagem Vestax 07, 1 mixador Korg Chaoss Pad, 2 agulhas Shure, 1 Oberheim OB12, 1 órgão elétrico Magnus e o DAW Pro Tools Digi 001 System Set. Essa foi a formula, junto de sua mente formada por livros de ficção científica e os samples de rock progressivo, para criar uma atmosfera medonha, futurista, suja e com tons de devastação. Ele já havia feito isso em outros discos, mas a importância de “Fantastic Damage” se dá resumindo em uma linha: “My name is El-P, i produced and i rap too”. Mais do que se provar como um gênial produtor, El se provou como um rapper de altíssima qualidade, formado nos subúrbios de Nova York, nas rodas de rima do Brooklyn.

O disco é aclamado de forma espiritual pelos grandes críticos de música. A pitchfork, um dos maiores sites especializados em música, deu uma nota 8,6 para o álbum, dissecando a obra de forma completa e com elogios sobre todos os processos do disco.

Mas enquanto os hinos anticapitalistas sempre foram sua especialidade, as maiores realizações de El-P neste álbum são suas novas habilidades líricas, ao mesmo tempo emocionalmente ressonantes, conceitualmente criativas e consistentes.

É um disco imprescindível para entender a mente do produtor e tudo o que existia por trás da Def Jux. A influência que “Fantastic Damage” teve no hip-hop é quase impossível de se rastrear, tamanho o barulho que fez na cabeça de novos e velhos artistas. Eé por isso que fechamos essa análise com chave de ouro, com essa obra e mostrando o legado gigantesco que El carrega nas costas, até os dias atuais.

Com o fim da Def Jux, como falei acima, muitos artistas seguiram carreiras solo, como Aesop Rock, Vast Aire e o próprio El-P, em seu projeto “Run the Jewels”, junto de Killer Mike. Outros se perderam pelo caminho, como o próprio Vordul Mega. Fato é que, para sempre, a Def será lembrada como uma das maiores gravadoras que o rap já teve, talvez comparada apenas pela Stones Throw, em questões de estética, influência e a forma como artistas envolvidos eram vistos e libertos para fazerem música com a alma.

O material do selo é enorme, impecável, então mesmo que não possamos ouvir novos lançamentos, a busca por essa época do rap é importante para entendermos a evolução do mesmo e glorificar o trabalho desses caras que bateram de frente com a indústria – e venceram.

Abaixo deixo uma playlist de algumas das faixas mais cabulosas da Def Jux. Até a próxima!

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.