No dia 25 de Agosto de 2018, um dos maiores clássicos da história do hip-hop completou 20 anos, The Miseducation of Lauryn Hill. Duas décadas depois do debute solo da cantora Lauryn Hill e até agora, seu único álbum, falaremos um pouco da influência e do enorme significado desse projeto.
Depois do sucesso dos Fugees com o disco The Score em 1996, a tumultuada relação entre Lauryn Hill e Wyclef Jean chegaria ao ponto final. O grupo se desmembrou em 1997, e a cantora começou a trabalhar no seu aguardado primeiro projeto solo.
No mesmo ano, Lauryn Hill se envolveu romanticamente com Rohan Marley, filho de Bob Marley, e ficou grávida de Zion, primeiro filho do casal. A gravidez e a separação dos Fugees fizeram a cantora tomar a decisão de trabalhar em The Miseducation of Lauryn Hill, majoritariamente gravado no lendário Tuff Gong Studios, em Kingston, entre o final de 1997 e Junho de 1998. O estúdio/gravadora foi fundado por Bob Marley nos anos 70.
De onde surgiu o nome?
Lauryn Hill buscou inspiração em duas obras para criar o nome do projeto. Foram elas: o livro de Carter G. Woodson, The Mis-Education of the Negro, de 1933. A tese de Woodson, é de que na época, os negros dos Estados Unidos estavam sendo doutrinados em vez de ensinados; e do filme The Education of Sonny Carson, de 1974, que conta a história do ativista Sonny Carson.
“O significado por trás disso, foi uma espécie de surpresa em mim achando que eu era muito esperta, quando na verdade eu não era,” disse a cantora em entrevista.
Ambas as obras falam sobre a comunidade negra norte-americana e representações dos mesmos na sociedade em diferentes épocas. O tema persiste dentro do álbum, com Lauryn tratando de falar com a mesma comunidade através de suas letras.
A musicalidade
Lauryn sempre esteve bem servida de musicalidade. Conhecedora de música, ela também andou bem acompanhada de grandes músicos durante toda a sua carreira. Wyclef Jean é um exemplo. Ele que não apoiava o disco solo da cantora, ofereceu ajuda tempos depois para trabalhar no projeto, mas ela não aceitou.
Foram encomendados inúmeros materiais para o trabalho. Hill disse querer trabalhar com todos os instrumentos que ela se apaixonou durante sua vida.
Gravado no Tuff Gong Studios, o disco claramente teria uma inspiração na musicalidade jamaicana. Lauryn abre o disco com “Lost Ones” com um sotaque muito forte, identificado por ser usado na Jamaica. O engenheiro de som Comissioner Gordon, relatou sobre a sessão que resultou na música: “Foi nossa primeira manhã na Jamaica e eu vi todas essas crianças em volta de Lauryn, gritando e dançando. Ela estava na sala de estar ao lado do estúdio com cerca de 15 netos do Bob Marley em volta dela, filhos de Ziggy, Stephen e Julian, e ela começou a rimar o verso, e todas as crianças começaram a repetir a última palavra de cada linha.”
Lauryn criou um grupo com músicos desconhecidos (Vada Nobles, Rasheem Pugh, Tejumold Newton, e Johari Newton), que formaram o New Ark. Anos depois, eles processariam a cantora por falta de créditos e pagamento.
O trabalho foi quase que inteiramente produzido pelo grupo. Hill não os creditou da maneira correta, mas junto ao grupo New Ark e ao produtor Che Pope, eles criaram um incrível projeto que ficou para a história.
A Columbia Records pressionou Lauryn na época para colocar RZA como um dos seus produtores. O Wu-Tang estourava na época graças ao trabalho do produtor e ele era extremamente requisitado na época. A cantora foi sucinta e negou a ajuda. “Seria mais difícil articular com outras pessoas. Hey… é o meu álbum! Quem tem uma melhor história para contar além de mim?” disse a cantora na época.
A musicalidade do projeto é extremamente elogiada até hoje. Sendo um dos grandes pontos de The Miseducation of Lauryn Hill.
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As letras
O disco saiu em uma época repleta de mudanças para Lauryn Hill. A saída dos Fugees foi um dos grandes catalisadores das suas letras mais reflexivas sobre sua carreira, ainda mais que um dos motivos do término do grupo foi o fim da sua relação com Wyclef Jean. Em 1996, a cantora começou seu relacionamento com Rohan Marley. E o primeiro filho do casal, Zion David Marley, nasceu no dia 3 de Agosto de 1997, quase um ano antes do lançamento de The Miseducation of Lauryn Hill, e bem na época que ela começava a escrever grande parte do trabalho.
Mesmo com vários fatores a inspirando, nota-se que o nascimento de Zion seja o maior motivo. Lauryn, aos 23 anos, precisava estabelecer sua carreira solo, e a gravidez deixou muitos com o pé atrás, como conta ela na música “To Zion”, que teve a participação do guitarrista Carlos Santana:
“Mas todo mundo me disse para ser esperta/’Pense em sua carreira,’ disseram eles/’Lauryn, querida, use sua cabeça’/Mas ao invés disso, escolhi usar meu coração”
“To Zion” é extremamente introspectiva. Lauryn deixou o recado claro: sua família vem antes da sua carreira. Se quem acompanhou a cantora após o ano de 1998, soube muito bem disso.
Lauryn também falou bastante dos Fugees, direcionando (indiretamente) alguns ataques à Wyclef Jean e Pras. “Lost Ones” talvez seja a faixa que mais deixa isso claro: “É engraçado como o dinheiro muda a situação/Má comunicação leva a complicação/Minha emancipação não entra na sua equação,” rimou ela nos três primeiros versos da música. Nessa faixa, ela arrisca rimas no dialeto patois, comum na Jamaica.
“Ex-Factor” também é direcionada à Wyclef, como algumas outras letras do disco. Hill fala bastante de um relacionamento anterior com o membro dos Fugees.
Apesar de muitas faixas falarem desse relacionamento antigo de Lauryn, em “Nothing Even Matters” ela fala da relação com Rohan Marley – os dois ficaram juntos até 2009, e tiveram cinco filhos. D’Angelo tem participação especial na música.
Ela também fala de amor em uma forma mais ampla, mas sempre direcionando muito das suas ideias para a comunidade negra e especialmente mulheres. Em “Doo Wop (That Thing)”, ela fala de relacionamentos e dá avisos de cuidado para homens e mulheres para não se doarem para pessoas que não buscam nada com eles além de sexo.
Em outros pontos, notamos uma presença do gospel bastante forte dentro de diversos contextos do disco. Seja no musical, vocal, mas também no lírico. Lauryn fala bastante de Deus e reflete inúmeras questões. Ela revelou anos depois em entrevista que o gênero é uma das suas grandes inspirações, e que durante as sessões de gravação, a bíblia esteve bastante presente com ela.
No final de várias músicas, o poeta Ras Baraka dá “aulas” para inúmeras crianças na sala da casa de Lauryn em Nova Jersey. Esses pequenos momentos lembrando do livro The Mis-Education of the Negro de Carter G. Woodson, onde a cantora parece tomar para si a tese do autor, e nesses momentos de “aulas” no disco, servem como o fato da comunidade que ela faz parte estar sendo ensinada a se redefinir.
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O legado
Em 2015, a Biblioteca do Congresso Norte-Americano selecionou The Miseducation of Lauryn Hill para entrar no Registro Nacional de Gravações, onde o projeto será preservado para a posterioridade. Talvez esse pequeno detalhe na trajetória de Lauryn já poderia explicar o legado que o álbum deixou, mas ele vai muito além disso.
Foram dez nomeações aos Grammys de 1999, onde ela levou cinco estatuetas para casa, sendo uma delas, a de Álbum do Ano.
O disco, é até hoje, o único de inéditas da cantora, que em 2002 teve um MTV Unplugged lançado como projeto. Lauryn dedicou-se a sua família muito mais do que a sua carreira, mas mesmo assim persiste como uma das maiores artistas que já existiram.
The Miseducation of Lauryn Hill foi o disco em que rimas e canto se misturaram da maneira perfeita, e a cantora definiu-se como o principal nome até hoje, inspirando artistas atuais, sejam homens ou mulheres. Em 2018, Drake usou “Ex-Factor” como sample de “Nice For What” e talvez seja a maior amostra de que o que a cantora aperfeiçoou nos anos noventa, continua em prática até hoje.
Lauryn foi capa da TIME Magazine de Fevereiro de 1999, sendo a primeira artista de hip-hop a conseguir tal feito. A edição creditou o projeto da cantora como um dos mais importantes para colocar o hip-hop no mainstream.
Em 2012, o disco entrou na lista da Rolling Stones de 500 Discos Mais Importantes da História. A revista Ebony, creditou a The Miseducation of Lauryn Hill – junto a Baduizm de Erykah Badu – a popularização do neo soul.
Se você nunca ouviu ou não conhece o projeto The Miseducation of Lauryn Hill, espero que esse artigo tenha ajudado. Mas você só irá entender toda a importância desse projeto, se der play nele agora: