Era uma quinta-feira chuvosa na cidade de São Paulo quando cheguei até o estúdio de DJ Cia, na zona norte da cidade. Simpático e simples, o DJ me recebeu para falarmos sobre um projeto em andamento com Mahogany, envolvendo funk e MC’s brasileiros, mas, claro, não sem antes tirar os sapatos para entrar em seu ambiente sagrado.

Mas logo o papo fugiu da questão inicial, afinal, estava diante de uma das maiores lendas do rap nacional, DJ e produtor do RZO e com uma carreira que, em 2019, completa 30 anos, cheia de lutas, conquistas e clássicos.

Cia, que nasceu Jeferson dos Santos Vieira, em 1973, é filho de DJ também, o que fez com que o amor pelos toca-discos surgisse cedo, o que fez com que ele, aos 16 anos, começasse a abrir bailes pela Zona Oeste de São Paulo, onde nasceu e foi criado.

Começou no MRN, conhecido grupo de rap paulista, mas foi no RZO onde se destacou, produziu clássicos e ajudou o grupo a se tornar um dos alicerces da nossa cultura.

Na entrevista abaixo, falamos sobre como tudo começou, as dificuldades, as vitórias, a trajetória e o futuro de sua carreira. Confiram!

[A entrevista e as fotos são do nosso colunista Marcola, com algumas das perguntas tendo sido formuladas pelo nosso outro colunista, Akhim, que não pode comparecer]
DJ Cia | Foto: Marcola

DJ Cia | Foto: Marcola

Cia, pra galera que ficou em coma nos últimos 30 anos e não o conhece (risos), acho importante apresentar quem é o DJ Cia, e como foi a evolução da sua carreira de lá pra cá –  carreira essa que se confunde com a própria evolução e história do RAP, e o que mudou na cena brasileira nesses 30 anos?

Eu acho que aumentou o número de pessoas fazendo RAP, vivendo da cultura e trabalhando por ela. Chegaram outras pessoas com outras idéias, outros ideais, outros estilos de vida, comportamento.  Mas não mudou pra galera que já fazia RAP naquela época e que mantiveram a mesma visão, o mesmo pensamento e ideologia, pra esses aí não mudou nada.

Então a gente vê a mudança nos novos, na verdade., porque os novos não são daquela mesma época em que a gente começou e que não viveram do que a gente viveu, não sofreram discriminação por ser rapper, tá ligado?

Eles não sofreram por andar de calça larga ou por estar na 24 de Maio (Região central de São Paulo) curtindo um disco num horário livre do trabalho e, por isso, você ser abordado pela polícia e o cara perguntando o que você tá fazendo ali, tá ligado?

Então a rua tá asfaltada pra eles, entendeu? Tá mais fácil, os caras tão tirando onda! Então eu não acho que mudou, eu acho que vieram mais pessoas, outros estilos, outras ideias, pessoas novas, com outra vivência, e o povo que é da minha geração continua na mesma idéia, mesmo conceito. E o que tem rolado é que algumas pessoas que entendem esse crescimento passaram a trabalhar com os novos e passar um pouco pra eles do que era o RAP naquela época e quais são os ideais do RAP, né mano? Porque se você fica só criticando e não passar a visão pros cara de qual é o ideal do RAP então não adianta nada.

Eu acho que essa visão tem que ser passada, tá chegando muita gente, então a gente tem que tentar trocar uma ideia e ver quem absorve a real intenção e função do RAP no Brasil e, com, isso, ver quem vem junto. Alguns vão vir e outros não, o que é normal.

Se você faz RAP, o RAP no Brasil luta por igualdade, fim da discriminação, pelo respeito, eu acho que isso sim tinha que ser cobrado. Se você vai fazer parte de uma parada nossa, que a gente brigou pra caralho com polícia atrás e hoje quer surfar na parada?  E não fizeram isso, e ai chegou um monte de moleque que faz o que quer e agora não adianta ficar brigando.

Pegando um gancho nesse assunto, tenho pensado muito sobre uma questão  e queria saber sua opinião.

Acho que temos “idolatrado” muito os Mc’s, ao passo que os outros elementos do Hip-Hop tem ficado em segundo plano. Você como DJ sabe que os DJ’s sofrem bastante com isso, os B-boys e B-Girls hoje em dia são meio que o underground do Hip-Hop, quase não se vê nada sobre eles e o movimento deles. Com isso, você acha que o Hip-Hop se perdeu? Acha que o RAP tem se destacado mais do que os demais elementos?

Não, eu não acho que se perdeu, eu acho que quando você entende que existem essa dificuldade, a gente tem que tentar fazer algo diferente e brilhar de uma maneira diferente dentro da área que você está atuando, entendeu?

Eu digo isso porque, como DJ, quando eu entrei no RZO, a gente colocava 15 caras no palco e o DJ atrás. Então eu tinha que fazer scratch, tinha que mixar legal, eu tinha que ter alguma coisa pros caras falarem: “Mano, esse cara no meio dos 15 tem que aparecer”, tá ligado? Não dá pra gente tampar ele.. Então, ficava uma metade pra cada lado e aí aparecia o DJ ..

DJ Cia | Foto: Marcola

DJ Cia | Foto: Marcola

E todos os 15 eram ativos no show?

Sim, mano, o RZO sempre teve muita gente participando.

Era tipo o nosso Wu Tan Clan

Sim, mano. Em show do RZO você tinha o Rappin Hood que aparecia do nada, o Xis, aparecia o Função RHK, aparecia muita gente na hora do show do RZO, e todo mundo subia no palco e cantava, não tinha problema. Então era aquele tumulto, imagina que cada cara chegava com mais 3 caras, então eu acho que não é uma questão de se perder e sim uma questão de tipo, entender que as coisas mudam e você tem que entender, tem que achar uma fórmula de você aparecer!

Falando dos B-boys/Girs, no Brasil eu acho que a galera se prende muito as músicas que são antigas, aqueles break beat muito antigos, certo? E eu acompanho muitos grupos de dança de fora do Brasil lá no instagram, eu vejo campeonato, e a galera tá fazendo a sua arte em cima de sons novos. E são os sons novos que as pessoas estão curtindo. Então você acaba mostrando a sua arte em cima de um som novo para pessoas novas., e você se destaca. Não adianta a gente ficar tocando só Curtis Mayfield nas festas sendo que, mano, hoje nego ta curtindo Migos, entendeu? Eu acho que tem que saber jogar!

Você acha que o RAP nacional ainda é muito conservador?

Eu acho que isso é uma grande besteira (o conservadorismo), porque o RAP daqui nem é tão grande assim pra galera ser conservadora. então os caras tem que entender que existem vários segmentos dentro do Hip-Hop, e quanto mais segmentos tiverem, mais elementos a cultura vai ter, e isso vai ajudar a crescer mais. Não adianta você falar que só tem que ter boom bap, porque vai ficar chato pra caralho! Todo mundo fazendo boom bap, todo mundo cantando igual, tá ligado?

Então eu acho que precisamos ter outros estilos, e os caras se respeitarem como fazendo parte da cultura, vai ser bom pra todo mundo. A gente precisa expandir o nome “rap”, O cara não quer saber se ele ta ouvindo TRAP, Boom bap, o leigo não sabe definir isso, o cara fala “rap”. Então é RAP, mano, você acaba tendo mais pessoas divulgando a nossa parada.

É que nem na música eletrônica, dentro dela tem vários segmentos como o dance, o drum and bass, tem tudo, e é classificado como “música eletrônica”. E se os caras pensassem como a galera da música eletrônica, hoje a gente tinha festival de RAP com vários tendas, tenda de boom bap, tenda de TRAP, tenda de anos 90, nova escola, velha escola, rap feminino, rap LGBT, ta tudo aí, mano!

É um crescimento, só que os caras tem que entender isso aí, não adianta os caras ficarem brigando, “ah, não, não pode fazer isso, não pode fazer aquilo”, eu acho que tem que entrar num entendimento de haverem regras, tá ligado?

Tipo, se você faz RAP, o RAP no Brasil luta por igualdade, fim da discriminação, pelo respeito, eu acho que isso sim tinha que ser cobrado. Se você vai fazer parte de uma parada nossa, que a gente brigou pra caralho com polícia atrás e hoje quer surfar na parada?  E não fizeram isso, e ai chegou um monte de moleque que faz o que quer e agora não adianta ficar brigando.

Você falou sobre esse aconselhamento da galera nova, mostrando que o movimento tem uma diretriz …

Ele tem uma função, mano não é que o RAP em si é político, mas ele cumpre a função da política, tá ligado? Que não dá uma auto-estima pro moleque, que não passa uma informação, que não incentiva o moleque a fazer um curso, aprender alguma coisa, saber se portar na frente das pessoas, saber chegar e saber sair, entendeu?

O RAP salvou um monte de gente ai, e eu acho que essa é a principal função do RAP! No brasil não é como lá fora, e muita gente aqui que fazer como lá fora, só que lá é pura arte. Os caras não precisam se preocupar com política, educação escola, porque o Estado dá isso pros caras. então lá é arte pura e os caras fazem o que querem. Uns e outros são bem políticos, por contra do racismo e opressão, mas são poucos, entendeu?

Aqui a gente não vive de arte, pode ver que toda hora tem que tá falando alguma coisa .. olha como o país tá, entendeu? Eu vejo isso, porque o RAP ainda é a única coisa que ainda fala alguma coisa sobre política, nos outros estilos eu não vejo isso.

Mano, mudando um pouco o assunto, você trabalhou com muita gente foda, como Ja Rule, 50 Cent, Snoop Dogg, Mobb Deep e mais. Como que foi a relação com os caras, como os caras te trataram e como foi essa recíproca?

Eu toquei com o Mobb Deep, e com a família deles eu tô com um projeto com o Infamous MOB, que são os caras que colava com o Prodigy e tal.

E na primeira vez que eu cheguei em Nova Iorque, foi através da Gabi Mosh, que trabalhava na gravadora do Jay-Z, e ela esteve uma época no Brasil pra promover a Rocawear, que é a marca de roupa dele. E ai eles queriam que eu usasse a roupa do Jay-Z, e eu falei: “Mano, roupa eu tenho, eu quero fazer um som com os caras (risos)”,  e foi essa brecha que eu achei

Ai ela perguntou se eu tinha os beats, e eu falei que tinha eles em casa, Carapicuíba e ela topou ir lá ouvir. Nessa eu já convoquei uns caras que faziam RAP por lá, ai em casa a gente ficou ouvindo as batidas, e ela curtiu pra caralho. Nisso ela falou “Porra, da hora, só que aí você precisa ir pra Nova Iorque apresentar isso pros caras, que ai eu consigo fazer você gravar com uma galera lá” ..

O mais difícil tava feito, né …

Sim, mano. Ai eu pensei: “e agora?”. Só que eu tenho uns amigos que moram lá já fazem uns anos, o Kiko Latino e tal, que trabalha comigo hoje, E ai eu liguei pra ele, falei o que tava rolando, pedi pra ele arrumar uns lugares pra eu tocar e tal. Ai eu fiquei com eles no Queens, eles arrumaram os locais pra eu tocar, toquei nuns pico louco lá, pra levantar um dinheiro, e fui, mano.

Leve meu notebook, minha placa de som, e lá no Queens eu liguei pra mina e falei: “Então, tô no Queens!”, e ai ela colou lá onde eu tava. Ela começou a chamar uns caras lá, e tinha um cara marrento pra caralho, ô negão marrento  (risos), eu sõ lembro do relógio dele, que era enorme, maior que o pulso dele.

Eu fui soltando uns beats, e ele sem reação nenhuma, ai no primeiro beat nada, no segundo ele já tava balançando a cabeça, no terceiro ele tava “uhhhhh”, (risos), e ai eu pensei: “agora vai”.

Logo depois a Gabi chamou o Nature (Rapper do Queens), que lançou o “The Firm”, produzido pelo Dr. Dre em 1997, e o cara é muito respeitado lá, e como se ele fosse um Mano Brown que não quis ir pra gravadora. E por isso todo mundo respeita muito ele. Ai eu gravei com ele 3 músicas, e foi foda demais.

E mano, começou a cola um monte de cara no pico lá, depois de saber que eu gravei com o Nature, colou o U-God do Wu Tang Clan, e quando esse mano chegou eu pensei: “agora fodeu!” (risos), e gravamos um som com ele também …

Você ficou nervoso com a situação ou ficou de boa?

Eu fiquei de boa, mano, já tava lá. né?  Tentava entender o que os caras não gostavam, perguntava, pra eu poder arrumar e melhorar, tá ligado? E foi dessa experiência que começou essa coisa de trombar os gringos e fazer essas conexões, entendeu?

E, com isso, toda vez que esse meu parceiro (Kiko), trazia show internacional pro Brasil eu já tentava desenrolar pra fazer um som, e até hoje tá rolando várias paradas, tem muita coisa pra sair.

E você se virou bem com o inglês na época?

Nada, mano eu tinha tradutor lá, e eu pedia pra eles me contar o que os cara tava falando. Tem muita coisa que eu entendo, tá ligado? Ai eu via que meu tradutor não me contava e falava: “mano, o cara falou um bagulho que você não quer falar, jão?” Que que ele falou aí?” (risos), porque eu tinha muito medo de errar, né, então eu preferia ficar só ouvindo e deixando os caras falarem.

DJ Cia | Foto: Marcola

DJ Cia | Foto: Marcola

 

Nossa cena tem ganhado mais espaço hoje em dia do que antigamente, talvez a gente esteja na nossa “Golden era comercial”. O projeto Beetloko rompeu muitas estruturas no RAP, quando vocês fizeram isso. O que você acha que é o responsável por essa abertura, e fazer a galera entender que possível viver disso?

A internet, né mano, a internet mostrou pros moleque como ganhar dinheiro. Quando o moleque começou a subir música no YouTube e ver um dinheiro caindo no caixa dele, acho que foi nesse momento que ele entendeu que a música dele rende uma grana.

E nisso as marcas começaram a entrar no jogo, porque vê que o cara tem visualização, tem público, e com isso querer chegar junto num videoclipe ou numas roupas, entendeu? Apesar de muitos caras ai pegar tênis de graça e postar “vivendo de adidas”, não ganha dinheiro nem nada, esses cara aí só arrasta! Eu acho que é da hora quando você pega um produto e ainda ganha pra usa-lo, essa parada eu acho que é o certo, tá ligado? E os cara tem que acordar pra isso aí.

Você acha então que a gente pode evoluir para um momento onde vai ter artista nosso no mesmo nível do Kanye West, que lança sua linha de tênis e tal, que isso vai ser mais comum?

Lógico que tem, mano! Eu acho que isso é mais como o moleque se portar e saber vender a parada dele, saber o valor do lance dele. Eu fiz um tênis com a DoubleG, licenciei com eles, fiquei um ano desenhando o tênis com os caras e foi bom pra caralho. Acho que foi o primeiro tênis com alguém do RAP bem feito, e os caras me pagaram pra usar, tá ligado? Então eu acho que é isso ai que a molecada tem que fazer, acordar pra isso aí, só falta esse detalhe ai pra parada ficar financeiramente bom pra todo mundo, e os moleque começar a investir no show, começar a ter um retorno maior e as coisas começarem a ser vistas como o sertanejo é visto , entende? Grande …

Essa visão que o RAP mais antigo tem do movimento atrapalha a evolução da nossa musicalidade?

Eu acho que não, acho que varia mais do conhecimento musical.Em Nova Iorque ou nesses países onde o RAP é mais tocado na rádio e tudo mais, eu acho que isso ensina os caras a aprender sobre musicalidade e poder ter referência de fazer som de mais formas, entendeu? Eu acho que essa geração nova (no Brasil) não conhece música – acho não , eu tenho certeza, são poucos que estudam música. Os caras estão fazendo ps raps todos iguais, as mesmas ideias.

Outro dia eu falei: “vou postar aqui as rimas que os cara tão fazendo”, e era só inverter a posição (das palavras), os raps eram todos iguais. É lean, night, maconha, meus grillz, minhas tretas, esse é o RAP de hoje, mano. Os caras não estão pensando em ajudar alguém, dar um incentivo ou passar uma mensagem, tá ligado? É tudo igual!

Mas eu acho que a causa disso é a falta de musicalidade. Eu vejo os caras falarem sobre mulher e parece que os caras nunca ouviram Jorge Ben, olha como o Jorge falava de mulher, tá ligado? Tim Maia falava de mulher …

A gente pode falar do mesmo tema de diversas formas, né …

Sim, diversas formas e falar bem, de uma forma poética, não só pelo fato de rimar, os cara fala: “ah, eu rimo pra caralho”. Porra, rimar pra caralho eu também posso rimar e não falar nada, então é foda, tem uns moleque que gosta disso, mas eu acho que eles só vão aprender isso quando tiverem mais velhos, quando tiver batendo de frente com imposto, com multa, correr atrás de pagar uma casa, aí o moleque vai ver que ele tá fudido num país onde ele poderia ter instruído o povo dele, os fãs dele ora votar melhor, reivindicar melhor os direitos dele, então isso tudo os caras ainda vão entender …

É uma coisa meio individualista, né

É, eles vão aprendendo. Mas o lance da musicalidade eu acho que falta os caras ouvirem música mesmo, a música tem muito instrumento, e eu vejo os caras fazendo RAP da mesma maneira, na mesma base, tá ligado?

Tipo, um bumbo, um 808, um kick, um hi0hat, um clap, um pad e já era. Sendo que os mesmos artistas que esses moleques curtem usam instrumentos de diversas maneiras, entendeu? Pega o último álbum do Kendrick, do Dr. Dre, o lance de voz e sample ..

Esse último do Meek Mill também, né

Entendeu? O bagulho é muito foda, musical, bonito …

Estúdio do DJ Cia | Foto: Marcola

Estúdio do DJ Cia | Foto: Marcola

 

Ainda sobre esse tema, nos anos 2000 a gente teve um boom de produtores gringos sampleando MPB e Bossa nova.  E agora, em 2019, você tá trabalhando com um produtor gringo que olhou pro nosso funk e achou foda pra caralho. O que você acha disso, mano?

A batida do funk é foda, mano, é uma batida envolvente. E hoje eu vejo várias formas que os cara tão fazendo funk, melhorou pra caramba, os caras estão criativos. E lá fora o funk vai ser ainda maior do que é, em todo lugar tem gente curtindo funk, os gringos já estão cantando em cima de funk, tá ligado?
Tem um projeto que eu tô fazendo com o DJ do 50 Cent (o Chubby), que tem vários caras cantando em cima de batida de funk, tem o French Montana, Fat Joe, Noreaga, e é uns cara da antiga, mano.

E você vê que, como os caras são bem musical, nem parece que é funk, mano, parece que é um RAP com uma batida diferente. E o funk tem uma energia, mano, os tamborzão louco!

Pois é, mano, teve um som tempos atrás do A$AP Ferg que o Busta Rhymes cantou num TRAP e eu fiquei: “Caralho!”

E você vê que o TRAP do A$AP Ferg é diferente dos demais, né? E é pesadão. E tem de vários estilos, mano, uns tem guitarra, outros tem sample, são umas produções bem cheias de instrumento.  O último disco do Travis Scott mesmo, porra, você vê o bagulho todo bonitão, muito bem tocado!

 

E esse movimento de artistas internacionais olhando pra música brasileira pode nos ajudar o RAP a olhar para nossa própria música?

Eu acho que é o jeito de se fazer, sabe? O jeito de cortar (o sample), de parecer um rap com MPB e não um RAP que é MPB.

Tem um disco no Renam Samam, do 4ª Estrofe, que ele fez isso e ficou muito foda …

Na época de sample mesmo eu usei muita coisa daqui. No Evolução (“Evolução é coisa”, disco de 2002 do RZO) eu sei Nelson Ned, tem Roberto Carlos, tem um monte de coisa nacional, só que eu sampleei sempre de um jeito diferente pra não ficar evidente, gostava de tentar deixar os caras adivinharem qual era o sample.

E você usava que tipo de equipamento nessa época? Você começou a produzir depois de discotecar?

Sim, comecei a produzir depois. Só que mano, a produção veio quando eu pensei: “Quando eu tiver velhinho como que eu vou fazer pra discotecar?” (risos), então é melhor aprender alguma coisa pra que, quando eu tiver velhinho eu eu fico de boa no meu estúdio e mandando música pro pessoal. Foi essa brisa aí que eu tive, mano.

E também porque, naquela época, eu brigava muito com gente de casa noturna pra poder tocar RAP. Tinha lugar que eu ia tocar e antes os caras mandavam e-mail: “ó, mano, vê se manera, não toca RAP nacional e tal”, e eu respondia: “Não, pode ficar tranquilo”, ai chegava na festa, a primeira musica que eu tocava era “Capítulo 4, versículo 3”, já para chacoalhar tudo.

E como eu brigava com muito cara que também não tocava nacional, os caras me queimavam nas outras casas, me chamavam de maloqueiro, diziam que a pista não ia fluir, e eu tô aqui até hoje, tocando RAP!

E com isso eu pensei: “Bom, se os caras tão falando que eu não vou tocar no clube, tudo bem, mas a minha música vai tocar”, e nisso eu comecei a produzir, nessas brisa ai.

Teve um dia desses que eu tava no sul, chegou no restaurante um cara, um maluco do rock, e ele já chegou falando que não gostava de RAP e nem de funk. Ele tava vendendo uns pendrive com um monte de música, e eu perguntei pra ele: “Tem DJ Cia?”, aí ele falou que nem conhecia e tal. Aí o mano saiu fora, foi na outra mesa e depois voltou. Eu acho que ele ficou meio pensativo, voltou e perguntou o que eu fazia da vida. Eu falei que era do RAP, e perguntei de novo: “E ai, você não tem mesmo DJ Cia?”, ele disse que não, ai eu falei: “Você tem Seu Jorge? Tem Charlie Brown? Tem Caetano Veloso?”, ele disse que sim, aí eu falei: Então você tem DJ Cia!” (risos), aí ele ficou meio assim, perguntou como fazia pra me seguir (risos)

Estúdio do DJ Cia | Foto: Marcola

Estúdio do DJ Cia | Foto: Marcola

 

E, mano, como que era produzir nessa época?

Antes de mim era pior ainda, porque os caras faziam tudo numa gravadora de rolo, era uma fita gigante que você fazia loop da fita, ficavam vários pedaços da fita no chão e você ia montando as batidas, tá ligado?

Aí na minha época já existiam os samples e os programas (DAW), eu lembro que o disco do RZO a gente fez na laje do Helião, eu usava um Pentium 3, uma Roland 303, e eu sampleava os discos do meu pai. Aí eu ficava lá fazendo as batidas, e quando saia algo eu ligava pros caras.

Eu lembro quando fiz a batida do “Filme triste” (clássico som do RZO), eu sõ levantei a mão pra cima e falei: “Obrigado, senhor, fiz um beat!” (risos).

Essa é uma das mais conhecidas do RZO, né?

E o Helião não gosta dele, fala que a batida é ruim. Foda, né ..

E você foi autodidata no aprendizado?

Eu sou, sempre fui na verdade, teimoso, preguiçoso, é um erro da porra, Eu eu falo pros moleque estudar, porque eu pegava meus baguio e ia no estúdio, pedia pros cara ouvir, perguntava onde tava errado, eu não perguntava se tava legal, porque tudo que você pergunta a pessoa fala: “ah, tá legal, tá da hora”, os caras tem medo de falar a verdade e quando fala a verdade o produtor fica bravo …

É, escrevendo sobre RAP eu vejo isso aí, não pode fazer crítica ao trabalho dos caras …

É, os caras ficam bravos, entendeu? E lá na gringa não, quando eu fui pra lá mostrar os beats pro DJ Clark, que trabalhava com o Jay-Z, eu colocava os beats e tal, se o cara não gostasse, em 4 segundos ele já falava: “passa”, pedia pra mudar, mano. O bagulho tem que ser na primeira, mano, na hora que bate um bumbo e uma caixa , se a caixa não combinar com o bumbo já era, esquece, não tem que ouvir. Aqui no Brasil o cara pede pra você ouvir o som dele, aí você senta pra ouvir, você não gosta, quer passar a música e o cara fica: “”não, espera o refrão, mano, o refrão tá foda”, porra, ai tem que esperar chegar até o refrão e tal.

Então mano, tem som que a gente ouve aí que bate na primeira. E outra parada que eu aprendi lá na gringa, com o Nature, quando o 50 Cent tava estourado, ele falou assim: “mano, eu quero que você faça um som melhor que esse e diferente desse”, ai meu cérebro explodiu, mano, porque é diferente da nossa cultura, tá ligado?

Aqui o cara chega com uma referência e fala: “eu quero um desse”, porque o mano quer um som igual. Então os caras colocam a música de referência da timeline (do software de produção), fica vendo as ondas sonoras e onde estão os timbres, e ai, embaixo, vai criando o som deles. Os caras tão copiando, entendeu?

Eu acho que a música inspira a música, você não tem que copiar. E foi trabalhando muito com os gringos que a coisa piorou, mano, porque o cara chega pra mim e fala: “eu quero uma música dessa”, eu já aviso que não vou fazer igual, mano. Se o cara quiser eu vou fazer do zero, porque mano, como que eu vou chegar lá fora e falar pro cara: “esse foi um som que eu fiz”, e o cara vai falar: “ah, esse som aí é do Drake”, tá ligado? Eu vou passar vergonha!

E como foi, a partir dessa vivência, trabalhar com pessoas de estilos diferente do nosso? Como foi produzir esse som com o Mahogany?

Então, o Mahogany chegou até mim através do sobrinho do Fat Joe, que eu conheci lá. aí ele tava vindo pro Brasil pegar umas referências pra um trabalho que tá fazendo com a Rihanna, tá ligado? Nisso, o sobrinho do Fat Joe falou pro Mahogany me procurar. Ai ele chegou no Rio de Janeiro, me ligou pra avisar, e eu falei que tava em casa, só que eu moro em São Paulo, mano. Eu achei que ele não viria pra cá, o cara chegou no Rio em pleno carnaval, mano, mas aí ele colou mesmo, tava focado mesmo, foi pro aeroporto e colou aqui em casa, rapidinho, no mesmo dia.

Ficamos aqui em casa uma semana, enquanto a gente trabalhava em algumas músicas ele foi conhecendo os moleques do funk, e aí gravamos um som pro disco dele, ele levou uns timbres de funk pra usar no trampo com a Rihanna. E foi isso, mano, bem natural, normal, tem que ser assim. A gente precisa ter os contatos, conhecer as pessoas, tem muita gente fazendo coisa com a galera da gringa, entendeu? Ainda mais os caras vendo os números do Brasil, os caras vem e faz.

E o que os caras acham do RAP nacional?

Eles acham antigo, ultrapassado, coisas que eles já ouviram e já fizera, Eu gosto de mostrar as coisas daqui pra eles, e eles dizem isso, que são coisas que eles já fizeram.

Foi a primeira vez que você produziu um MC de funk?

Não, mano, eu já tinha produzido o Catra, uma música chamada “Isso é favela”, só que nessa faixa o Catra cantou um RAP, rima pesada dele. Mas na batida de funk mesmo essa foi a primeira vez.

A maioria desses moleque conhece RAP e tentou cantar RAP, só que o RAP, por ser chato pra caralho e cagando regra, fez os moleque ir pro funk. E lá eles se deram bem, muito melhor do que cantando RAP, tem uns moleque aí milionário. E agora os moleque faz o que quer, cheio de dinheiro, tão cantando RAP, quem vai falar que eles não pode? Ai eles colam aqui, a gente faz o trampo, uns ficam bem louco mesmo.

Você acha que o RAP e o funk podem caminhar mais junto?

Eu acho que já rá rolando pra caralho, principalmente no Rio, os caras lá são muito mais avançados nisso. Você pega o Cacife Clandestino, o Orochi, WC no BEat, é funk e RAP pra caralho. Em São Paulo tem o Pedrinho que fez um som com o Edi Rock, o Kevin, os moleque do Haikaiss, a Cintia Luz, tem uma galera trabalhando, a molecada nova tá mais ligada, entendeu?

Mas o Rio, por ter mais funkeiro, os caras se trombarem mais, tem muito mais disso, e fica bom, mano. Eu fiz uma com o MC Cabelinho num disco meu, uma com o Kevin, tem uns cara do funk no meu disco.

E falando de disco, você tem uma noção de quantos vinil tem aí?

Ah, não tenho muito, não. Teve uma época que eu pirei, só que eu fui roubado, aí eu não quis comprar tudo de novo. Eu fui roubado num show do Wu Tang Clan, mano, num evento chamado “Millenium RAP”, acho que devia ter umas 40 mil pessoas, por aí. Aí invadiram o palco, aí fodeu. Era só vinil, levei vinil pra caralho, eu era o DJ da festa, isso foi 2001 eu acho.

Cia, pra gente finalizar, passando rapidamente por toda essa trajetória, você tem vontade de fazer alguma parada que ainda não rolou?

Vixi, tem coisa pra caralho ainda, o barato é infinito, mano!
Não dá pra falar exatamente, mas tem muita coisa que eu quero fazer, eu não fiz tudo ainda, tá ligado?  Eu tô começando ainda, igual um monte de cara, e tipo, os cara pode falar: “ah, o DI Cia””, da hora, só que eu tô igual qualquer outro DJ Cia ai da gringa, tipo o Khaled, por exemplo, que quer fazer mais coisas, muito mais coisas. Eu quero aumentar meu estúdio, quero gravar com um monte de gente, quero um monte de produtor trabalhando comigo, quero gravar com outros artistas grandes, quero gravar um disco acústico, um só com DJ, só de scratch, tem coisa pra caramba pra fazer ainda.

Você já pensou em produzir jazz, umas paradas do tipo? Tem muito produtor lá de fora que faz isso

Ah, a gente faz algo misturado, né, dentro da minha linha eu trago um pouco disso pro RAP. Tem uns elementos de jazz em algumas músicas. Mas, tem um monte de coisa aí pra fazer, é questão de tempo e oportunidade pra fazer, e aí vamo fazer.

Eu, KL Jay e Erick Jay tocamos numa orquestra recentemente, mano, dentro do Teatro Municipal de São Paulo, e foi foda pra caralho. 3 DJ , a orquestra gigante, e foi uma parada que aconteceu, mano.

Essa falta de visão de que o artista precisa se reinventar foi o que deixou muita gente pra trás aqui na nossa cena?

Eu acho que os caras se acomodaram, mano, e essa é a pior arma contra nós, achar que você é o melhor, isso tudo fode demais. Hoje o barato tá diferente, você precisa por o seu produto na prateleira, sem poeira, e fazer com que as pessoas vejam ele. Você precisa se ver como mais um produto no meio de mais um monte, e o seu precisa estar ali brilhando.

DJ Cia | Foto: Marcola

DJ Cia | Foto: Marcola

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.