Há dois anos, Isa Muhammad lançava a sua mixtape de estreia, “Diabolical Bastard Billionaire Genius”. A história de Isa e sua mixtape dariam um filme, daqueles que vemos diariamente em nossas comunidades, observando quase que em tempo real a transformação de um jovem negro.

Vou começar contando como o conheci, e depois falarei sobre como ele se re-conectou com a vida, através do RAP:

Réveillon de 2016, eu e meus amigos jantando, bebendo e confraternizando os últimos dias do ano. “BlackLivesMatter” ecoava sem parar em nossa festa, o que fez com que, automaticamente, passássemos a ficar viciados na mixtape e no rapper desconhecido. Nos reconhecer em linhas como “Made it past 25 nigga n’ I ain’t dead or in jail” foi como rever a nossa própria trajetória, que, como dito por Mano Brown, “27 anos, contrariando as estatísticas” é motivo de comemoração.

Isa foi encontrado em situação de rua por Rick Ross, em Venice Beach, Miami. O já estabelecido rapper ficou encantado com a habilidade lírica de Isa, sua técnica, flow, a quase desnecessária respiração e muita agressividade na forma como cuspia sua inteligência em juntar palavras e a revolta com a situação do negro em diáspora. Logo foi contratado pela MMG, gravadora de Ross, o que levantou rumores de um possível trabalho de estréia. Isso fez com o que o jovem rapper tivesse a oportunidade de abandonar as ruas, trabalhar em suas músicas e se recolocar em sociedade.

No dia 22 de dezembro de 2016, o site Audio Mack disponibilizou, como presente de natal, a mixtape “Diobolical Bastard Billionaire Genius”. Produzido em apenas 5 meses, o trabalho foi apoiado por alguns sites, mas, por mais que o rapper fosse parte de um selo grande como a MMG, teve pouquíssimo amparo das mídias e de sua própria gravadora, nem mesmo com impulsionamento nas redes sociais. Nada disso barrou o barulho que o trabalho do “Maldito gênio” fez no underground, e logo começaram a pipocar, no YouTube, louvores sobre o trabalho apresentado por Isa.

Ei, isso é para filho da puta, todos vocês manos por aí, assustado e merda da polícia fodida
Que porra você tem medo, mano? Você é um homem negro, filho da puta
Você é a porra do homem original, mano. Que porra que você tem medo, mano?
Levante-se homem negro, pare de ser um medroso, mano! Proteja suas comunidades!
Este não é um jogo filho da puta, mano, este é o fim dos tempos, nego!

O rapper havia feito uma série de tuites (aparentemente, ele deletou sua conta), agradecendo pessoas do mundo todo, inclusive do Brasil, pelo retorno sobre sua mixtape, e tudo isso fez parecer que a carreira de Isa iria decolar cada vez mais.

Porém, no dia 5 de Janeiro de 2017, menos de um mês depois do lançamento, ele disparou algumas mensagens no Twitter sobre seu descontentamento com a gravadora:

“Eu não estou mais fazendo música. Este é meu primeiro e único álbum, eu me aposento da música. Não porque não está indo como eu quero, mas porque a música é proibida no Islã e porque a música não faz parte do meu plano. Ainda sou Isa Muhammad, nada mudou, eu não vou mais deixar de ser rap. Para o próximo jogo.

Se alguém quiser me contratar ou me dispensar da MMG, precisaria de um contrato muito grande, algo como 4,5 milhões. Eu não estou viajando, eu realizei o que eu queria fazer, eu fiz um álbum clássico.

Algumas das coisas que eu estou fazendo são polêmicas para Rick Ross e MMG apoiarem, eu não quero mais assinar com a MMG. Eles me insultaram com a forma como me trataram, dada a minha performance. Como eu disse, eu nem estou pensando em música, eu segui em frente. Sério, fiz outros planos. Eu estou nessa como  Lauryn Hill”

Isa fez o que prometeu, e pretendo explicar porque acredito que “DBBG” é um clássico, não para a história do Hip-Hop como conhecemos, mas para mim.

Isa, aos 5 anos de idade, na capa da mixtaape "Diabolical Bastard Billionaire Genius"

Isa, aos 5 anos de idade, na capa da mixtape “Diabolical Bastard Billionaire Genius”

Diferente da maioria dos rappers, que haviam vivido na miséria durante a infância, tendo que recorrer ao tráfico para sobreviver, Isa, como podemos ver na capa de sua mixtape, era uma criança que, aparentemente, tinha uma condição mínima, o que nos faz pensar que miséria foi uma condição tardia. E é isso que o difere, o fato de, em fase adulta, estar em situação de rua, sem roupas, sem comida, afundado em drogas. Uma joia escondida nas ruas da Califórnia, um dos estados mais ricos dos Estados Unidos, capital do sonho neoliberal. Isa é como eu ou você, ou como aquele morador de rua que vemos diariamente pelas ruas das capitais brasileiras. E Isa teve a chance de dizer ao mundo o que o trouxe à essa realidade.

Em “BlackLivesMatter”, o MC literalmente cospe fogo para toda a opressão que o afro-americano sofre, sem espaço na sociedade americana, majoritariamente racista. 23 anos depois de “36 Chambers”, Isa nos lembra de proteger o pescoço, porque o clima tá sempre tenso para quem tem a pele escura. E deixa o aviso: “Black lives doesn’t matter!”.

A mixtape vai se desenrolando a partir disso, com uma temática que passa pelas questões raciais, de classe, com desejo de vitória. Tudo muito bem produzido por diversos beatmakers, flertando entre o RAP da velha e nova escola em questão de sonoridade.

Escolas essas que são homenageadas desde o título da faixa – “Isa A$AP Rocky˜, uma homenagem ao MC homônimo, como linhas em que cita Mos Def, Pharrel e Pusha T. Agradecendo por ter passado por 25 anos sem ter morrido ou ter sido preso, falando da fé no Islã, é nítido como o MC tem grandes influências música, culturais e de vida.

Eu gosto como Isa expressa amor e ódio nas mesmas linhas, e como isso se parece com sua personalidade forjada a ferro e fogo nas ruas.

E isso é tudo que eu amo,  foda-se, manos
Venha contra mim, e se eu tiver que ir, estou levando pelo menos três ou quatro de você comigo

Esse clipe, gravado logo após sua contratação pela MGM, é o que é pelas linhas cuspidas. Isa voltando como um rei, ou um guerreiro muçulmano, cercado dos manos e da comunidade negra, amor e ódio num mesmo espaço.

É nessa antítese entre amor e ódio, negros e brancos, vitória e derrota que Isa vai se mostrando afiado, atualizado e acima de tudo, ciente de tudo o que tem acontecido e o levado pelos caminhos da vida. “Reem riches” é o som onde ele deixa bem claro por que e quem faz isso tudo: ele mesmo. O refrão dessa faixa é sensacional, atemporal e otimista como se deve agir quem vem de baixo, diante de todas as contradições.

E ainda é poder negro e eles não podem matar todos nós
Acabei de comprar A Casa Branca e estou tentando construir um muro

O beat produzido por Fitz Vogue é o que permita essa mensagem, e é isso que faz, também, um disco conceitual e datado de sua época: o casamento entre rima e batida, e como elas, juntas, contam histórias.

Isa Muhammad durante o MMG Weekend

Isa Muhammad durante o MMG Weekend

O que torna Isa ainda mais aproximado dos velhos rappers é a fé no Islã. Seguidor da Nação do Islã, se apegou no alcorão e em Allah enquanto as ruas ainda eram suas casa. É essa a mensagem por trás de “Elijah Muhammad”, com em que faz homenagem ao fundador da Nação. E em mais uma exibição de que, não existe beat onde Isa não possa cuspir um flow diferenciado de quase todos os rappers da cena atual, e não existe barreiras para que ele possa rimar de forma violenta, expressando seu desejo em se manter vivo, afinal, em como diz em uma de suas linhas, sobrepondo sons anteriores “vidas negras importam, minha vida importa”. E seus gritos de liberdade vão ecoando sobre batidas sampleando soul, quase como os cantos que os negros faziam nas lavouras, distantes de suas casas e famílias, implorando por vida.

E, conforme a mixtape vai se encaminhando ao seu fim, é evidente como o ódio vai dando lugar à auto-estima negra. Em faixa com participação de Rick Ross e Curren$y, Isa Muhammad compara o trio ao Los Angeles Lakers. O time que dominou a década de 80 da NBA, venceu 5 das oito finais em que participou, entre 1980 e 1989, sendo comandado pelo astro Magic Johnson, jogador negro e um dos mais importantes da história do basquete.

Anos atrás eles nos trouxeram até aqui em seus navios, nossa pele era negra pra caralho, preta como Wesley Snipes.
Fomos roubados da pátria em uma crise, roubados do nosso Islã por alguma merda de Jesus Cristo
Foi adorado no Egito, jovem Imhotep Osirus , emojis em papiro, eu tenho um problema, eu sou obcecado com conhecimento antigo, que os brancos tentaram escondê-lo, mas não conseguiram nem encontrá-lo

Isa termina sua mixtape reivindicando suas origens africanas, a origem do seu povo, e, nas entrelinhas, exclamando contra as cruzadas e a missão do branco em apagar a história magnifica que os povos negros antigos construíram. E assim como eu “BlackLivesMatter”, nos lembra mais uma vez, agora em “Knight rider”, que as vidas negras realmente nunca importaram.

A ideia desse texto não era fazer uma analise de cada uma das letras, visto que a mixtape é composta por 25 faixas. Mas, sim, fazer uma homenagem à Isa e essa mixtape que tanto emocionaram a mim, pessoalmente. E trás uma reflexão acerca de artistas que não atingiram o status de milionários no RAP, que dia após dia tem desaparecido da cena, sem perspectivas, sem espaço na grande mídia e sem apoio. Assim como MFDOOM chegou a viver nas ruas após o fim do KMD e Vordul Mega teve o mesmo destino por algum tempo, após o lançamento de “The cold vein”, Isa superou as ruas mas não conseguiu se manter em evidência. E precisamos discutir não só o espaço do negro em questão de raça, mas também de classe. E que as vidas negras passem a importar!

E é com essa mensagem que a mixtape deixou sua marca, mostrando todo o ódio guardado no coração de Isa, transformado em arte, como fizeram Prodigy, Nas, 2Pac e tantos outros. O negro, com suas lutas, frustrações e atrasos perante o branco, já nasce gênio. Seja criando a maioria dos estilos musicais que hoje conhecemos, no esporte, na arte, nas lutas, o negro é um gênio por excelência, por “estar pelo menos 100 vezes atrasado pela escravidão, pelos trauma, pelas psicose”. E com tudo isso, ainda cria e cria com o pior que pode ter dentro de si.

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.