ATLiens é o segundo disco lançado pelo Outkast, dupla composta por Andre 3000 e Big Boi. Se você não os conhece, sugiro que apague sua biblioteca do Spotify e ouça toda a discografia do grupo, uma das mais bem estabelecidas e versáteis em se tratando de RAP.

Mas, hoje, eu tô aqui pra contar a história dessa lendária dupla – talvez a maior da história do RAP, e contar como eles pavimentaram o caminho para o som que vinha de Atlanta e todo o sul dos Estados Unidos, o que aconteceu logo após o lançamento do disco.

“Southernplayalisticadillacmuzik” e o início de uma lenda

Muito antes de “Hey ya” estourar nas paradas de sucesso, num momento onde consumiamos RAP e videoclipes na MTV, mais precisamente em 1994, Andre 3k e Big Boi lançaram o seu primeiro disco, chamado “Southernplayalisticadillacmuzik“. Até o estabelecimento do álbum como um disco de platina, foi um caminho longo para os dois garotos nascidos em East Point, Atlanta, cidade conhecida hoje em dia como o berço do TRAP e rota de tráfico nos Estados Unidos.

Andre 3k nasceu André Lauren Benjamin, e Big Boi nasceu Antwan André Patton. Os dois se conheceram na escola, em 1992, aos 16 anos. Um ano depois lançaram o single “Player’s Ball”, que chegou a ficar em primeiro lugar na Billboard Hot Rap Songs. A parte engraçada sobre esse single é que ele, originalmente, foi inserido num ÁLBUM DE NATAL da gravadora LaFace Records, por onde a dupla começou sua carreira. Após o sucesso do som, com os DJ’s o tocando sem parar, a gravadora decidiu solta-lo som como um single independente.

Nesse meio tempo, se juntaram ao time da Organized Noize, um dos grupos de produtores mais respeitados no RAP, e que você podem conhecer melhor nesse documentário, disponível na Netflix.

Até os 17 anos, André ainda trabalhava com serigrafia na loja do padrasto enquanto Big Boi se tornou pai. Motivos para apostar no RAP não faltaram, mas a dupla, assim como vários outros negros norte-americanos, tiveram que correr muito para alcançar um contrato de gravação. E o fato de serem rappers do sul tornava o caminho ainda mais difícil. Guardem essa informação pois ela será importante para entendermos o impacto de ATLiens na cena.

Andre 3000 e Big Boi. Foto por Timothy White

Andre 3000 e Big Boi. Foto por Timothy White

No auge da treta entre Costa Leste e Oeste, o sul tinha algo a dizer.

Em 1995, ocorreu a segunda edição do Source Awards, prêmio criado pela revista The Source.

Essa foi a edição mais emblemática de todos os tempos, e isso é explicado pelo momento do RAP nos Estados Unidos. Enquanto Snoop Dogg reclamava da forma como a Costa Oeste era tratada em Nova York, Suge Knight zombava de como Puff Daddy dançava nos clipes. Esse foi o começo de uma guerra que resultou na morte de 2 Pac e Notorious BIG.

“Qualquer artista lá fora que quiser se tornar uma estrela, sem precisar se preocupar com produtor executivo tentando aparecer em todas as músicas, em todos os vídeos, dançando neles e tal — venha para a Death Row!” (Suge Knight, durante a premiação).

Junte isso ao fato de que o evento ocorreu em Nova York, após o atentado a tiros sofrido por 2 Pac e o crescimento que a Bad Boy Records estava passando, e o clima era de extrema tensão e rivalidade.

No meio disso tudo, algo chamou atenção: Na categoria de “Melhor novo grupo de RAP”, uma dupla ainda pouco conhecida foi premiada: Outkast, com seu disco de estréia. O que deveria ser uma celebração do RAP como negócio, arte e fortalecimento da industria, se tornou um momento lamentável, causado pelas bancas de Nova York. Ao subir no palco, a dupla André e Big Boi foi vaiada pelos presentes, deixando ambos furiosos com a recepção que tiveram dos “irmãos da costa leste”. O RAP do sul sempre foi tirado pelas demais regiões dos Estados Unidos, sendo taxados de “caipiras”, e esse fato culminou num discurso enraivecido de Andre e uma profecia que hoje se cumpre, 24 anos depois: “O Sul tem algo a dizer!”. 

Esse episódio motivou a dupla a mostrar o que o sul tinha realmente a dizer, e o que fizeram reverbera até hoje, com a ascensão do RAP sulista e sua hegemonia na música, contrastando com o fato da cada vez mais decadente música vinda de Nova York e uma mudança brusca na forma como o som que vem da Califórnia tem sido criado. Vamos à ATLiens!

 

It’s Just Two Dope Boyz In A Cadillac

ATLiens é a junção das palavras “Atlanta” e “estrangeiros”, o que dá o tom do disco. Devido aos fatos citados anteriormente, a dupla se sentia como seres de outro mundo, querendo o seu espaço na música negra, de que tinham o direito. Big Boi havia acabado de ser pai e André havia adotado uma dieta vegetariana e parado de fumar maconha. Ambos os fatos também contribuíram para a construção do disco e, principalmente, para a forma com o qual foi concebido.

You can be sure, some go low to get high
You may hurt till you cry, you may die (You may die)
Keep on trying (Keep on trying)
‘Til it’s summer, in the city, Til it’s summer, in the city

Após uma oração católica como introdução do disco, a obra começa, de fato, com “Two dope boyz in a caddilac”. Em uma entrevista, Big Boi disse que esse sempre foi o carro favorito da dupla, tendo diversos deles durante toda a vida. A faixa tem um clima meio praia, melódica, mas é o primeiro grande grito de revolta da dupla, humilhada no passado. André e Big Boi foram um dos primeiros artistas do sul a usar o que chamamos de “Triple rhyme”. Podemos perceber na faixa como André rima de forma que parece sair do ritmo, mas no verso seguinte ele volta fechando a rima de forma muito rápida, colocando uma quantidade de palavras imensa dentro de uma ou duas linhas. André conta como um “MC otário” o desafiou para uma batalha, provando a ele que “não está metido com essa merda que existe na cena”. Linha explicita de ataque os MC’s da costa leste e oeste, colocando o sul como algo diferente e de respeito. O curioso é que, provavelmente, o termo “sucker MC” foi uma referência à um grupo do Queens: Run DMC.

É interessante notar também as temáticas que a dupla seguiu durante o disco. Se em “Southernplayalisticadillacmuzik”a dupla falava sobre como ser um cafetão do sul, em ATLiens os temas variam em torno de sexo, dinheiro, vida, vitória, ascensão material e espiritual, dentre tantos outros assuntos que, de certa forma, eram abordados de maneiras distintas por outros rappers, afinal, estamos falando dos anos 90. Esse foi um dos motivos pelo qual o Outkast foi rejeitado no começo da carreira, o que não impediu a dupla de trazer versos tão incríveis na faixa que trás o nome do disco.

Agora, minha ilustração oral é como estimulação clitoriana
Para o sexo feminino, não há nada melhor
Deixe-me saber quando estiver molhada o suficiente pra que eu possa entrar
Se não, eu vou esperar, porque o futuro do mundo depende
Se ou não a criança que criamos tem essa síndrome
Ou saberá aproveitar as chances, independentemente do tom da pele?

A faixa ATLiens é a sonoridade futurista que a dupla de Atlanta trouxe ao disco, que inclusive teve 1/3 do mesmo produzido por Andre e Big Boi. A dupla contou que, na época da produção de ATLiens, teve uma liberdade maior, dada pela gravadora, para criar sua obra. Isso fez com que ambos adquirissem uma MPC3000, um teclado sintetizador ASR e uma placa de som. Foi com isso que ambos criaram os dois maiores singles do disco, com o restante das batidas ficando a cargo da Organized Noize.

Esse som tem tanta rima foda que não cabe aqui explicar uma a uma, então a lição de casa, para quem não domina o inglês, é verificar a transcrição do som no Genius.

O que me chama atenção na faixa, mais do que todo o swing e as barras, é o refrão.

Outkast - ATLiens

Outkast – ATLiens

Na última palavra de cada linha, Andre mudou a sonoridade do termo pra que pudesse rimar com o som de “yea-yer”. Então, onde temos “air”, o som se torna “ei-iar”, e onde temos “care”, o som se torna “quei-iar”, e com isso, todas as palavras rimam com “O-Yea_yer”! Esse tipo de rima é bem conhecida por serem usadas por MC’s como MFDOOM, mas estamos falando de 1998!

utKast em Miami, visitando DJ EFN e sua equipe de Crazy Hood em seu programa de rádio pirata por volta de 1996.

utKast em Miami, visitando DJ EFN e sua equipe de Crazy Hood em seu programa de rádio pirata por volta de 1996.

Eu pessoalmente acredito que um dos maiores méritos do Outkast foi se reinventar a cada disco, principalmente em sua sonoridade. Desde a fase “pop” de “Speakerboxxx/The Love Below”, passando pelo som apocaliptico de “Stankonia”, posso dizer que não existe um disco igual ao outro na discografia da dupla. Ponto para os meninos do Sul, que souberam entender a musicalidade, diferente da maioria dos artistas de Nova York e Calffornia, que em muitos casos, viveram de um certo legado.

Isso fica evidente em 3 faixas: “Wheelz of Steel”, “Elevators” e “Ova Da Wudz”. O som que vinha do Sul nessa época era marcado pelo som de Memphis, do Three Six Mafia, que deu origem ao TRAP de Atlanta. André e Big Boi estavam tão a frente do seu tempo que praticamente não flertaram com essa sonoridade. O que ATLIens nos trás é uma sensação atmosférica, com uma carga de vivência de rua muito grande, e eu acredito que exista uma certa influência do boom bap da Costa Leste com as linhas de sintetizador da Costa Oeste. O que eu quero dizer é que ATLiens te leva pra um rolê de Caddilac pelas ruas, literalmente. Os instrumentais de “Ova Da Wunz” e “Wheelz of Steel” são quebrados e com um swing que não se via muito pelo Hip-Hop. Já “Elevators” se tornou um dos grandes singles do disco. Foi produzida pela dupla, e ficou conhecido como uma das caras do chamado “Dirty South”, que é um estilo, de certa maneira, difícil de definir.

One for the money, yes, sir, two for the show, acouple of years ago on Headland and Delowe
Was the start of something good, where me and my nigga rode the MARTA through the hood
Just tryna find that hook up

Mas as gírias, a forma de rimar metricamente quebrando os versos e, principalmente, um misto de batidas pesadas e dançantes, podem resumir o que o gênero e também o Outkast fizeram.

Por toda a obra, você se sente como um morador de Atlanta. E não é como se sentir parte de Illmatic, é algo muito particular de quem mora no Sul, muito particular de quem fez o corre de outra maneira. Essa sensação característica de conseguir se ver dentro de um álbum é um dos fatores que o tornam um clássico;  E é em linhas como “Poder, poder, me dê um pouco a voz mortal sobre tambores, nós somos de  ATL. Coloque os SWATS no carro, vamos viajar para longe, as estrelas do Southern brilham”  que a gente consegue ter uma dimensão do bairrismo criado pelos artistas do Sul, e como foi algo específico deles. Quando, no refrão, a dupla fala sobre os “SWATS”, é só uma gíria para “Southern Wet Atlanta too strongs”, trocadilho com a tropa de elite da polícia americana. “Ova Da Wodz” é quase como ouvir “Serial Khillla”, só que no Sul!

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Ainda sobre “Elevators”, a faixa teve um clipe lançado, o que fez com que se levantassem suspeitas de simbolismo inseridos no video. André, quando do momento de gravação do disco, estava tentando terminar a escola, bem como parado de beber, fumar maconha e ter flertado com o celibato. Isso tudo, junto da sua leitura de livros espirituais, deu origem à “faixa de elevação” de ATLiens. Elementos como a passagem por uma selva, representando a jornada da dupla, cenas de meditação onde Andre e Big Boi estão tentando acessar seus espíritos, tudo isso simbolizando o crescimento da dupla.

Esse é um gancho para a faixa “Mainstream” que esbarra na dificuldade do negro em evoluir materialmente e socialmente. Não custa lembrar que estamos falando do sul dos Estados Unidos, região racista e pobre (para os negros). Paralelo à esse tema, a dupla aborda a questão do mainstream enquanto movimento que ignora as causas sociais e prega o acumulo de riqueza e a subida nos degraus do capital.

Meus manos, eles andam de bicicleta entre os veículos, fora do bairro
Conhecendo cada negro vendendo, mas você pode culpar o fato de a única maneira como um irmão pode sobreviver ao jogo
Difícil de lidar com o narcotráfico, lidando com matanças  fatais, e alimentando o tempo, escrevendo rimas
Não é só a polícia, nós matamos uns aos outros, apenas perdemos outro irmão

Obviamente que o Outkast atingiu status de lenda no mainstream, mas é preciso considerar a forma como a dupla chegou à esse estágio em sua música. Autenticidade, inovação a cada disco e toda uma região marginalizada sendo carregada nas costas, esses foram os elementos presentes por toda a obra da dupla. Sendo assim, a crítica feita em 1996 ainda é muito presente, visto que estamos diante da ascensão do neo-fascismo e das políticas neoliberais por todo o mundo.

No fim das contas, ATLiens é também sobre envelhecer, evoluir e ser visto. É sobre quem você é e de onde você é. Big Rube finaliza o disco com “13th floor / Growing old”, que é justamente sobre esses temas todos. As linhas da poesia recitada pelo rapper falam sobre como devemos focar em quem somos e onde devemos e precisamos chegar. É como Andre diz na linha “Leve essa música a sério enquanto eles se divertem” que é quase como a advertência que Prodigy fez em “Shock Ones 2″(Now, take these words home and think it through / Or the next rhyme I write might be about you). ATLiens é sobre tudo isso, e é sobre o que o sul tinha a dizer!

 

Números não mentem

Para se ter uma ideia do impacto de ATliens, vamos aos números.

O disco foi classificado como platina dupla pela Recording Industry Association of America, chegando a marca de 1.848.096 cópias vendidas. Só nas duas primeiras semanas, vendeu 350 mil cópias! Claro que o número não chega nem perto das 11 milhões de cópias vendidas de “Speakerboxxx/The Love Below”, mas sendo o segundo disco da dupla, e um disco que afrontava todos os conceitos do RAP, é uma marca e tanto!

O álbum estreou no número 2 da parada americana Billboard 200. O primeiro single do álbum, “Elevators (Me & You)”, alcançou o número 12 e passou 20 semanas na parada Billboard Hot 100.Já a faixa “ATLiens” alcançou o número 35 e passou 17 semanas na Hot 100. E, por fim, “Jazzy Belle” passou 14 semanas e alcançou o número 52 na Hot 100.

Após “ATLiens” a dupla traria mais alguns clássicos, sendo, com certeza, um dos grupos mais geniais e emblemáticos da história do RAP, com uma discografia impecável, que não dá margem para trabalhos medianos. André 3000 é considerado por muitos como um dos 5 melhores MC’s de todos os tempos, sendo citado, inclusive, na faixa “Control”, de kendrick Lamar.

Separe um tempo, de um pause no TRAP que vem sendo feito pelo Sul, e ouça os precursores dessa região talentosa e lendária dos Estados Unidos!

Outkast - Stankonia

Outkast – Stankonia

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.