Histórias da Minha Área é reafirmação de identidade em um discurso.

13 de março se tornou um dia sagrado no rap nacional. Desde 2017, o rapper mineiro Djonga lança, religiosamente, um álbum novo. Heresia (2017), O Menino Que Queria Ser Deus (2018), Ladrão (2019) e, o último lançamento, Histórias da Minha Área. O quarto álbum da carreira do artista dá a continuidade de projetos onde o discurso e a narrativa são peças essenciais na conquista de um patamar lírico, elevado e relevante na cena do rap brasileiro.

Foto por Daniel Assis, do 176 Studio

A fórmula do Djonga, além de consistente em termos de qualidade – mesmo que seja possível argumentar que há uma certa oscilação entre os trabalhos – coloca sobre o próprio artista uma pressão em entregar aos fãs histórias que os façam se manter apaixonados pelo MC. O falar do “nós”, de forma narrativa, possivelmente contribui para que sejam as narrativas a forma discursiva privilegiada para construção dos sentidos desta identidade.

Nós era ruim na porrada, hoje é baile da Serra

As narrativas são os instrumentos principais que permitem Djonga falar de um acontecimento/experiência a partir de uma lembrança de algo já vivido, uma ferramenta que garante ser pontual e efetivo ao “passar a visão” através de sua música. Gustavo conta histórias pessoais, que ressonam com facilidade com histórias das mais diversas quebradas pelo país. Um exemplo disso é como o rapper sabe da sua didática e relevância de seu discurso, como ele mesmo cita no refrão da primeira faixa do álbum.

Esta perspectiva precede a ideia de que a audiência constrói conjuntamente a narrativa, tanto historicamente quanto culturalmente. Assim, a ideia de contar uma história passa a ser um processo de elaboração coletivo, onde aquele que conta e aquele que ouve criam sentidos colaborativamente.

Quem tem, quem tem, vem de, vende lá
Disposição e motivo de sobra pra troca…

“O cara de óculos”

Muito além de uma capa

Capa: –  arte de Alvaro B. Jr, do Caverna Studios, e foto de Daniel Assis, do 176 Studio

Quando o disco traz uma capa com imagens de jovens mortos, simplesmente por viverem na periferia – local onde a sociedade de certa maneira os negligenciou – Djonga se coloca no lugar do ouvinte e vice-versa. Desta maneira, o MC se vê no compromisso em honrar cada uma das vidas ali representadas.

Ao nomear o seu lançamento como Histórias da Minha Área, Djonga estabeleceu seu bairro como esse espaço de narrativa e o centro da temática em que a própria decorre. As referências a zona leste – Favela do Índio onde nasceu, e São Lucas onde cresceu e continua pela área – são colocadas bem sutilmente em seus versos, bem postos no lifestyle periférico mineiro.

A paisagem, como traço essencial de uma sociabilidade experimentada em um mundo compartilhado, e os laços de confiança e respeito recíproco, são evidenciados pela rotina das pessoas que a constituem, muito mais do que a localização em si. Ideia sintetizada no verso de participação da Cristal:

Tudo o que eu tenho pra apostar são essas rimas
Tem quem compre a ideia, tem quem compre essa briga
Claro que eu quero ver meu som estourando lá em cima
Mas o meu primeiro hit eu fiz no quintal de família

“O que é da “área” é realmente o que acontece ali, mas que não tem uma referência direta e individualizada – seja sobre a favela do Índio ou ao bairro São Lucas – ficando muito mais subjetiva. Ou seja, qualquer um dos elementos podem ser encontrados em outras favelas e periferias. O mapeamento afetivo que poderia ser composto por uma tangente regionalista insuficiente.

Eles quer estirar seu corpo aí nesse cimento
Fala mal, mas aqui é bola, igreja ou crime
Que serve pra tirar os menorzin do sofrimento
Então a onda é ser vapor pra andar de Vapormax

“Gelo”

A construção do disco

Quando o disco parece cru, em termos de produção musical, isso não é um problema, e sim uma escolha estratégica do Djonga. Esta opção dá ao disco a sensação de que as histórias contadas são cenas de um filme de drama dos irmãos Safdie, ou de terror do Jordan Peele, como se o clímax estivesse prestes a ocorrer. E neste momento decisivo e imprevisível, ocorre como se o personagem tivesse muito a falar mas que estivesse prestes a perder sua vida. O que é uma realidade quando pensamos que, de acordo com os dados de 2016 no Atlas da Violência 2018, “das 61.283 mortes violentas ocorridas em 2016 no Brasil, a maioria das vítimas são homens (92%), negros (74,5%) e jovens (53% entre 15 e 29 anos)”.

Não é o que eu canto, é como eu canto
Eu como o canto, eu vivo isso 24 hora’
Tem coragem de abdicar e não demonstrar fraqueza
Tipo esses papo de que homem não chora
Eu juro que eu jogo com tudo e não me contundo

“Amr Sinto Falta da Nssa Casa”

Fica a impressão de que todos estes elementos que contribuem para o álbum poderiam ter sido entregues na produção. Mesmo que os beat tragam elementos do funk e trap, o desempenho fica abaixo da expectativa. A sensação que passa é que os versos e a estética pensada ao escrevê-los foram concebidas antes do beat estar pronto, e ele foi conduzido para caber no flow e na voz de Djonga.

Gustavo mantém uma consistência nas escolhas dos beats, onde os instrumentais de “Histórias da minha área” poderiam ser de qualquer um dos álbuns anteriores, o que deve ser reflexo da parceria de longa data com Coyote, que deve ter assinado pelo menos 90% das produções dos seus últimos 4 discos.

“Não sei rezar” e “Gelo” são as faixas que mais diferem e se apresentam mais ousadas. A segunda tem as participações de NGC Borges e FBC, dois dos destaques do álbum, e um refrão influenciado por “Hail Mary” (1996) do 2pac:

Sem pretensão
Se tu peita, o bonde ‘guenta a pressão
Se não vai tomar no… uh lalala, uh lalala, uh
Uh lalala, uh lalala, uh

O Djonga que rima em qualquer um de seus discos é uma faceta do MC mineiro, que não é melhor ou pior que aquele que aparece e destrói nas participações ou constrói histórias sensacionais em outros projetos. É um Djonga diferente, com um foco em fazer justiça as escolhas tomadas na construção de cada obra.

Videoclipe da faixa “Hoje Não”, Produzido pela Babilonya Film Music. O clipe, que conta com o próprio Djonga na direção de cena, mostra cenas do MC sob alvo de uma arma em contraste com cenas do cotidiano da periferia.

Desde o lançamento de Heresia (2017) – primeiro álbum do artista – ele consegue ir além de fatos biográficos. Contar histórias e partilhar de suas vivências faz com que o ouvinte imagine não só um passado, presente e futuro, conseguindo assim construir uma história com sentido para ele mesmo. É a narrativa como performance e como um fio condutor internacional.

Mais do que simples histórias

Particularmente, está última produção do Djonga supera com facilidade Ladrão e provavelmente se coloque em um patamar próximo ao O Menino Que Queria Ser Deus. Contudo, para evitar comparações polêmicas que possam desmerecer o pelo trabalho do MC mineiro, é importante ressaltar que cada um de seus disco tem uma importância em sua evolução.

Na construção de Histórias da Minha Área, o espaço onde a narrativa acontece e a relação do indivíduo reconhecendo seu habitat se associam, o que resulta nas pessoas compartilharem com o MC esse mesmo ambiente. Para quem ainda tinha dúvidas, Gustavo demonstra uma percepção única ao contar as suas histórias, de tal forma que seus ouvintes enxergam no Djonga a si próprios ou que pelo menos poderiam ser um dos personagens cantados em suas músicas.

Essa é pros amigo que partiu pr’uma melhor
Eu canto pra subir, mano, eu não sei rezar, woah

Refrão de “Não Sei Rezar”

A consistência do lançamento anual optada pelo mineiro – 4 lançamentos seguidos no dia 13 de março – é, sem dúvida, uma fórmula de sucesso, mas parece não ter uma manutenção digna nesse período. Os fãs podem dizer o contrário, mas esta fórmula não surpreende mais e se prolongada pode gerar um efeito de saturação da imagem do artista.

Não é como se Djonga precisasse modificar seu estilo, mas optar por novas alternativas na estética e na produção, o que poderiam ajudar na elevação e continuação do discurso do artista, que é importante e segue relevante para o seu público. Cair no mais do mesmo transparece uma sensação de conforto e conformidade na exposição de seu trabalho, que contraria a própria proporção que o artista tomou nestes últimos anos.

Quando Djonga “confessa” que não sabe a dimensão do seu tamanho, é fácil entender, pois nem mesmo os fãs têm noção do quão grande é o MC mineiro. Na sua live no Youtube, realizada no dia 10 de Abril de 2020, mais de 200 mil pessoas o assistiram simultaneamente, 100 mil reais foram arrecadados para ajudar a sua comunidade e o vídeo alcançou cerca de 3 milhões de visualizações em 10 dias.

Histórias da Minha Área é um ótimo trabalho do Djonga, uma composição marcante na sua ótima discografia até então. O MC mineiro já é um dos maiores expoentes do rap nacional e um artista de destaque na música brasileira, independentemente do gênero. Tudo isso não quer dizer que o mineiro não possa fazer mais.

Deixe seu comentário!
Share this...
Share on Facebook
Facebook
Tweet about this on Twitter
Twitter