2019 marca o aniversário de 10 anos do lançamento de “Exhibit C”, single do rapper Jay Electronica. É simbólico falarmos disso atualmente por dois motivos: Neste ano temos discos como “Black On Both Sides”, “Operation: Doomsday”, “Soundpiece: Da Antidote”, “Murda Muzik” e outros fazendo 20 anos, bem como “The Ecstatic” completando 10 anos, o que faz de 2019 um ano de grandes celebrações para o RAP.

Pra além disso, recentemente presenciamos uma polêmica envolvendo o rapper Offset, afirmando que “os rappers antigos deveriam beijar nossos pés!”, numa afirmação que envolve coisas como fama, números, plataformas de streaming e dinheiro.

Quando se trata de RAP não existem classes, ou superiores contra inferiores. Somos todos um time. Cada um com atributos individuais, que adiciona seu conjunto de habilidades especiais e energia para o todo.

– Busta Rhymes

Claro que a voz da maioria dos MC’s da nova geração – que ocupam o mainstream, não deveriam ser levadas a sério. Mas é evidente que as gerações atuais precisam se lembrar e reconhecer os fatores que fazem o Hip-Hop ser uma cultura distinta, e que não deve ser, em grau de prioridade, analisada pelos métodos que o integrante do Migos propõe em sua afirmação.

Pode ser estranho um texto louvando um single, mas devemos lembrar de nossas origens enquanto cultura artística e de fortalecimento de laços raciais e de classe, de comunidade e de diáspora, que fogem da ótica liberal e do “American Dream”. Respeitarmos a nossa linhagem e ancestralidade é dever e não opção.

Criticas a parte, vamos a “Exhibit C”!

Jay Electroninica (Foto por rayyyau)

Jay Electroninica (Foto por rayyyau)

 

Antecedentes e recepção

“Exhibit C” foi lançada no iTunes em 22 de dezembro de 2009, como um EP contendo versões explícitas, limpas e instrumentais. A produção ficou por conta de Just Blaze, o mago das batidas enérgicas. A faixa tem um apelo autobiográfico, contando a trajetória de Jay desde os tempos em que vivia nas ruas de Nova York, passando necessidades financeiras e desconhecimento enquanto artista. A capa do EP é uma fotografia colorida de Nikola Tesla, sentado diante de sua invenção – a Bobina de Tesla.

Jay nos conta que a faixa foi produzida em apenas 15 minutos, pois sua finalidade era meramente comercial: Ele queria ter uma música para tocar no Shade 45, que é um canal de música que toca hip-hop sem censura, criado por Eminem e a Shady Records.

O que foi criado sem muitas pretensões logo tomou enormes proporções.

Em primeiro lugar, “Exhibit C” recebeu o prêmio “Sucker Free Summit” da MTV, como “clássico instantâneo”. Em 2013, a Complex colocou a faixa em sua lista de “30 canções mais líricas dos últimos 5 anos”. O site About.com elegeu a faixa como a melhor de 2009. Além dos prêmios, comentários como “”Exhibit C é a peça mais bem sucedida de ‘rap consciente neste milênio – talvez de todos os tempos”, pela NME.

O instrumental da faixa foi usado por gente como Fabolous, Cassidy, Crooked I , Joell Ortiz, Bobby Creekwater, AZ, NORE, Saigon, Charles Hamilton , BoB , Childish Gambino , Twista , Papoose , The Game , Lil B , Cashis e Big KRI, além de Mos Def, que tocou a música ao vivo.

E o que faz uma faixa ter todos esses elogios, se comparando com outras faixas lendárias da história do Hip-Hop? Separei alguns trechos de “Exhibit C’, explicando linhas para que possamos entender o que faz dela um clássico eterno do RAP.

Jay Elect-Ramadan

Jay Elect-Ramadan

Exhibit C: Entre a condição de rua e a iluminação

“Exhibit C” é uma faixa que, antes de mais nada, aborda a transformação, seja ela material ou espiritual. Jay Electronica, em pouco mais de 5 minutos, conseguiu narrar de forma extremamente poética e magistral sua própria jornada enquanto ser humano em busca da própria história e caminho. É como se fosse a jornada do herói, de Neo, do Messias ou qualquer outro personagem.

Durante a história,  centenas de rappers tentaram contar sua própria história em forma de discos, EPs, mixtapes, e enfim, independentemente do formato, o importante é mostrar quem é. mas nem todos dominam a arte do storytelling, e é aqui o ponto crucial: Jay Elec soube como ninguém sintetizar a narrativa e coloca-la de forma tão objetiva e emocionante, ainda mais se tratando de uma única faixa.

Sem mais enrolação, vamos ao que interessa? Entender como essa música se tornou um clássico!

When I was sleepin’ on the train, sleepin’ on Meserole Ave out in the rain
Without even a single slice of pizza to my name, too proud to beg for change, mastering the pain
When New York niggas was calling southern rappers lames, but then jacking our slang

Jay começa rimando sobre seus dias nas ruas, passando necessidades, fome, vivendo literalmente na miséria, “sem uma fatia de pizza em seu nome”. O rapper nasceu em New Orleans, mas percorreu muitos estados americanos como andarilho, até que se firmasse em Nova Iorque. Um fato interessante é que, vivendo em NY, Jay passou por muitos preconceitos por ser um MC sulista. Já falamos sobre isso em textos abordando Outkast e o Memphis RAP. Ao mesmo tempo em que havia esse preconceito, os rappers nova-iorquinos se apropriavam das gírias e estilo dos negros do sul.

Ainda longe de atingir a sua “iluminação”, era uma pessoa orgulhosa, sem coragem de pedir ajuda para sair daquela situação.

 

I used to get dizzy spells, hear a little ring, the voice of a angel telling me my name
Telling me that one day I’ma be a great mane, transforming with the Megatron Don, spittin’ out flames
Eating wack rappers alive, shittin’ out chains

Aqui a leitura pode ser feita de diversas formas. Mediunidade, drogas, o que quer que seja fez com que Jay tivesse esse “contato sobrenatural”. É sabido que a mediunidade, durante muito tempo, foi confundida com a esquizofrenia e outros transtornos psíquicos. Independente disso, foi nesse momento que ele passou a perceber que tinha uma “jornada” para trilhar, onde, finalmente, seria grande. É bacana ver como ele rima “name” com “mane”, uma gíria do sul para “homem/mano”.

E pra selar a rima, uma punchline assombrosa: “Comendo rappers fracos e cagando suas correntes!”, que segue a linha dos ataques aos MC’s de nova iorque.

E chegamos ao ponto onde Jay tem seu contato com a Nação dos 5%, um tema importantíssimo em sua obra e vida.

Jay Elect-Ramadan

Jay Elect-Ramadan

I ain’t believe it then; nigga, I was homeless (Uh huh), fightin’, shootin’ dice, smokin’ weed on the corners, trying to find the meaning of life in a Corona
‘Til the Five Percenters rolled up on a nigga and informed him: “You either build or destroy, where you come from?”
– “The Magnolia projects in the 3rd ward slum”, “Hmmm… it’s quite amazing that you rhyme how you do and that you shine like you grew up in a shrine in Peru.” (Oh!)

O momento onde Jay conhece a Nação dos 5% é onde começa a sua trajetória. Munido de sabedoria mas descrente com sua condição, a maneira como lidava com seus problemas era bebendo pelas esquinas de NY. Quando do momento de sua iniciação no Islã, Jay passa a ter consciência de suas próprias habilidades como MC e ser humano. Eu gosto desse verso por ele mostrar algo que vai ficar mais evidente em outros versos: Sua crença espiritual não se resume ao Islamismo, e prova disso é quando diz que “brilha como um santuário no peru”, fazendo referência aos Incas. É como se tivesse sido aberto um portal dentro de Jay, onde ele pudesse ver “além do normal”, tema que foi explorado por mim numa resenha sobre Capital STEEZ.

 

While y’all debated who the truth was like Jews and Christians, i was on Cecil B, Broad Street, Master
North Philly, South Philly, 23rd, Tasker, Six Mile, Seven Mile, Hartwell, Gratiot (Oh!)
Where niggas really would pack a U-haul truck up, put the high beams on, drive up on the curb
At a barbecue and hop up out the back like, “What’s up?!”

Essa é a porra da minha linha favorita nessa faixa! Árabes foram tirados do debate sobre seu próprio futuro no oriente Médio, principalmente após serem expulsos pelo Estado Judeu de sua própria terra.

Isso fez com que o caminho fosse aberto para um debate unilateral entre cristãos e judeus sobre quem é, de fato, dono da chamada “terra santa”. A sacada de Jay nessas linhas é mostrar, que, enquanto ambos estão debatendo o assunto dentro de uma falaciosa diplomacia burguesa, ele está nas ruas onde o negro ainda está se matando e buscando sua sobrevivência,  e que, acima de toda essa diplomacia, somente a vivência perto dos mais necessitados pode trazer a igualdade verdadeira!

Nas hit me up on the phone, said “What you waitin’ on?. Tip hit me up with a tweet, said “What you waitin’ on?”
Diddy send a text every hour on the dot sayin’: “When you gon drop that verse? Nigga, you taking long”
So, now, I’m back spittin’ that heat, could pass a polygraph, that Reverend Run rockin’ Adidas out on Hollis Ave
That FOI, Marcus Garvey, Niki Tesla, i shock you like an eel, electric feel, Jay Electra

Nas, Q-Tip e Paff Daddy estão clamando por Jay Electronica e sua música. Lembram do verso sobre os rappers de Nova York estarem fazerem pouco caso dos rappers do sul? Então, Jay em sua fase já fora das ruas e fazendo parte da cena, fez o mesmo que Outkast e o TRAP de Atlanta: Tomaram conta do jogo! Os maiores nomes da Costa Leste estavam de joelhos para a lírica de Jay Elec! Estamos em um novo momento da vida do MC, que atravessou a miséria das ruas e, diante de uma nova realidade, trilhando a sua jornada messiânica.

Jay Electronica e Nas: O sul, novamente, coloca Nova York de joelhos.

Jay Electronica e Nas: O sul, novamente, coloca Nova York de joelhos.

Levando o som de Jay como a tal “jornada do herói”, chego aqui ao ponto alto e o que podemos chamar de “iluminação”, ou “Bodhi”. 

They call me Jay Electronica—fuck that
Call me Jay Elec-Hanukkah, Jay Elec-Yarmulke, Jay Elect-Ramadan, Muhammad as-salaam-alaikum, RasoulAllah Subhanahu wa ta’ala through your monitor

Outro dos infinitos versos lendários de “Exhibit C”. Jay Electronica atinge seu grau elevado de consciência, onde se vê em par de igualdade com todos os demais, com a vida e sua existência. Note que aqui existem duas referências ao Judaismo: A “Hanukkah” ou “Chanucá” é uma festa judaica que celebra alguns momentos da história do povo judeu. A outra referência é sobre o “Yarmulke” ou “Quipá”, que é o chapéu utilizado pelos judeus, tanto como símbolo da religião como símbolo de temor a Deus. Por fim, Jay usa também o termo “Ramadan”, ou “Ramadã”, que é um período do calendário muçulmano onde pede-se ao crente maior proximidade dos valores sagrados, leitura mais assídua do Alcorão, frequência da oração na mesquita, correção pessoal e auto-domínio.

Bom, ao falar “Call me Elec-Hanukkah, Jay Elec-Yarmulke, Jay Elect-Ramadan”, ele simplesmente diz que é um JUDEU, um MUÇULMANO, ou seja, ele é igual a todos, e todos são igual a ele. Aqui é uma forma de, indiretamente, Jay se mostrar crente na solução de dois estados e na co-existência pacifica entre judeus e árabes, celebrando o caminho da paz entre os povos, o que fica evidente quando diz ” Muhammad as-salaam-alaikum RasoulAllah Subhanahu wa ta’ala”ou “Muhammad,, mensageiro de Deus, que a paz esteja com você!”.

 

I got a lot of family, you got a lot of fans ( … )
That’s why the people got my back like the Verizon man
Out in London, smokin’, vibin’ while I ride the tram ( … )
I’m chillin’ out at Tweetstock, building by the millions
My light is brilliant

Tomei a liberdade de juntar algumas linhas correlacionadas dos últimos versos de Jay para finalizar o texto e explicar o fim dessa jornada.

Em uma matéria da EMCEE chamada “Exhibit D”, o relato do jornalista foi de que, durante uma apresentação em Detroit, 2018, após cantar “Exhibit C”, Jay cumprimentou todos os espectadores do show, um a um, e isso nos faz entender o significado de “eu tenho uma família, você tem fãs”. Penso também em uma analogia entre Jay, a jornada messiânica que abordei durante todo o texto e seus fãs como uma família ou .. apóstolos. Mas essa eu deixo pra vo&es pensarem!

Após toda essa trajetória de fome, miséria, Jay chega em Londres, fumando maconha num bode vermelho e voltando por cima de toda essa história de luta, assinalando a vitória prevista pelas “vozes dos anjos”, até compreender, finalmente, que sua luz é brilhante!

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Passando toda a explicação dessa história gloriosa, chegamos em 2019 com Jay sendo considerado uma das maiores lendas no ofício do MC, mesmo sem ter laçado o seu aguardado disco. E esse fato comprova o que eu falei no começo do texto, e podemos repensar nossa relação com a obra dos artistas que amamos e o que podemos esperar deles. Espero que tenham gostado, e que a paz esteja com vocês!

 

 

 

 

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Marco Aurélio

Marco Aurélio

Fotografo shows sujos onde frequento, escrevo rimas que nunca vou lançar e faço pautas sobre coisas que vocês (ainda) não conhecem.